É preciso que eu faça uma mea culpa de antemão: como o Tauil me alertou esses dias pelo Twitter, há pouquíssimos autores brasileiros no meu censo literário de 2011. Dediquei consideráveis tempo e esforços na literatura norte-americana nesse ano, principalmente perscrutando a obra de John Steinbeck, mas devo dizer apesar de tudo isso, que a literatura brasileira contemporânea tem se consolidado com solidez e estilo no cenário não só nacional como internacional. Livros como Nove noites, de Bernardo Carvalho são evidências desse processo de constituição e solidificação.

O romance orbita em torno da enigmática figura do etnólogo norte-americano Buell Quain, que cometeu suicídio em 1939, aos 27 anos, quando passava uma estada entre os índios krahô aqui no Brasil. O misterioso evento chamou a atenção do escritor, que buscou através do livro não só penetrar no âmago dessa decisão extrema, como também estender suas reflexões acerca da conflituosa relação índios/não-índios ao longo de boa parte da história brasileira desde a década de 30.

O narrador-investigador que reconstrói a trajetória do pesquisador (para tentar extrair dela algum sentido que lhe supra a própria lógica) nos apresenta um panorama acerca das intensas trocas culturais proporcionadas pelos estudos antropológicos e etnográficos das tribos indígenas (seja por pesquisadores brasileiros, seja por aprendizes da escola do famoso antropólogo Franz Boas), e também acerca da alteridade levada às últimas e trágicas consequências.

A história corre através desses dois focos: o do investigador e o dos próprios documentos que apontaram indícios sobre a morte. Alternando os dois âmbitos de narração, o autor consegue criar um ritmo peculiar para a história, de modo que mesmo conhecendo o desfecho de uma, o leitor se sinta absorvido pela outra, pois se sente parte da investigação, como se não só acompanhasse, mas participasse das descobertas. Ou da falta delas, ocasionalmente.

Nove Noites carrega (de acordo com minha leitura) a referência a dois livros dos quais gosto muito: Coração das trevas, de Joseph Conrad; e Liquidação, de Imre Kertész. O primeiro por conta da jornada obscura e antecipadamente mórbida de Buell Quain, que se embrenha não atrás de Kurtz, mas atrás de uma quimera tão letal quanto. O segundo possui uma consonância mais sutil: Amargo, o esfíngico personagem de Liquidação, quando do seu suicídio, revelou todo o sintomático estatuto e condição de uma situação histórica de um contingente bastante numeroso de pessoas; Quain se assemelha ao personagem de Kertész porque seu suicídio também tem ressonâncias históricas profundas, já que seu ato adquire posteriormente valor emblemático acerca da condição dos indígenas perante o avanço da “civilização” (outra reverberação conradiana), quando foram (e continuam sendo) pressionados e expropriados cotidianamente.

Ao passo que vamos acompanhando a vida de Quain através dos documentos que carregam seu rastro, e a pesquisa do narrador em relação ao etnólogo, vai se desenhando um pano de fundo trágico sobre as perdas dos índios, a destruição de seu modo de vida e mesmo como, apesar da reverência e da curiosidade investigativa de pesquisadores, os estudos acabaram por revelar as diferenças profundas de ver e sentir o mundo e a existência. Não raro essa distinção acabava desembocando em embates sangrentos. Buell Quain faz parte desse mundo em ruptura.

Bernardo Carvalho faz surgir da história intrigante de um homem um complexo retrato do processo de destruição dos índios e de seus modos de viver. Ao narrar as experiências e o cotidiano das aldeias, o escritor não poupa detalhes vários sobre a vida indígena, matizando um assunto que tem sido tratado em muitos casos através de extremos, oscilando entre visões que procuravam barbarizar os índios (criando por conseguinte a “necessidade de civilizá-los”) e outras de inspiração mais voltada a Rousseau e seu “bom selvagem”.

Não à toa que Nove noites e Bernardo Carvalho tenham angariado seu lugar no cenário literário brasileiro e mundial.