Tudo começa no país nascido da África do Sul após o apartheid e a maneira como foi possível apagar décadas  de violência e levar a vida adiante. Era impossível levar à cadeia os culpados pelo antigo regime e também alguns antigos adversários sem uma guerra civil. Ao mesmo tempo,  era preciso algum tipo de punição. A solução foi um processo que criou uma justiça mais dedicada a servir de ritual do que a realmente fazer justiça. Diante de uma comissão da verdade, algozes precisavam ouvir o relato de seus crimes e manifestar arrependimento. Em troca, eram anistiados. O processo livrou quase todos da prisão, mas deu às vítimas e seus parentes um lugar onde expiar sua dor.

Perdão e arrependimento são, assim, conceitos-chave para a África do Sul das últimas duas décadas, sendo parte do próprio sistema de valores da sociedade e o passo necessário para a expiação de David Lurie, personagem principal de “Desonra”, de J.M. Coetzee, livro de 1999 relançado agora numa coleção especial que comemora o 25º aniversário da Companhia das Letras.

Li “Desonra” quase inteiro numa viagem de ônibus de São Paulo para Porto Alegre. A história de alguma maneira combinou com aquele dia de sol, em setembro, com o mar por horas surgindo e desaparecendo à minha esquerda. Por se tratar de um livro fundamental, há na internet boas resenhas. Muito se escreveu sobre a política por trás do livro, que se passa durante o governo de Nelson Mandela, político simpático ao mundo, mas que pouco fez para impedir uma explosão de revanchismo e violência racial no país, a maneira como estabelece a incomunicabilidade entre os personagens e a escrita seca empregada por Coetzee em comparação com o estilo ensaístico de outras obras. Mas pouco se ressalta um tema importante: “Desonra” também é um livro sobre a ruína da lógica.

David Lurie, professor universitário sul-africano acomodado numa vida sem muitas emoções, morador da Cidade do Cabo, duas vezes divorciado, é um tipo bastante comum, mas sua vida está acomodada de tal maneira que não suporta a mínima alteração. Quando a prostituta que visita semanalmente passa a se recusar a vê-lo, é capaz de causar perturbação a ponto de levá-lo a ter um caso com uma aluna, a razão de sua “desonra”.

Este é um esquema de coisas que se repete. Ao longo do livro a irracionalidade, às vezes bem intencionada, às vezes indiferente e cruel, da Áfrical do Sul moderna entra em choque com a insistência de Lurie em se apegar a um velho sistema de valores – coerência, moral, lei, justiça – inútil no momento. À medida em que a história avança, a incapacidade em seguir as regras do mundo é a verdadeira razão da derrocada de Lurie.

O que, senão a razão,  faz Lurie perder a chance de escapar impune mesmo quando o caso com a estudante é descoberto? Basta manifestar arrependimento, oferece a comissão que investiga o caso, e tudo será acomodado numa punição menor e considerado uma fraqueza. Mas, para ele, há aí uma questão incontornável: pode a universidade exigir dele um sentimento?

O arrependimento, afinal, é questão pessoal.  A recusa em cumprir o ritual, já que não está arrependido, sela seu destino. Lurie perde o emprego, a carreira, a reputação, a aposentadoria e então viaja para visitar  Lucy, que luta para conseguir manter uma fazenda no interior, onde sua percepção do mundo será continuamente testada e frustrada. Como em outro livro de Coetzee, “A vida e o tempo de Michael K.”, no fim é um personagem que perdeu praticamente tudo.

Desonra
J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
264 Páginas
Preço sugerido: R$56,00

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

Sobre o autor: Alexandre Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1967, mas mora desde os trinta anos em Porto Alegre. É jornalista e, como repórter, durante dez anos cobriu crimes na Baixada Fluminense e Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, trabalhou como repórter esportivo no jornal Zero Hora e como editor no portal Terra, além de escrever para as revistas Galileu, Superinteressante e Piauí. Escreve ficção desde sempre, tendo colaborado com o extinto e-zine Cardosonline e a revista eletrônica Fraude. Também publicou uma coluna semanal no site Popular, do Terra, entre 2002 e 2004. Não tem ilusões quanto a si mesmo, é vascaíno e detesta cebola. Em 2010, lançou pela Não Editora Veja se responde essa pergunta, seu primeiro livro de ficção.