O tcheco Milan Kundera, famoso por seu romance A insustentável leveza do ser, é um escritor pelo qual tenho bastante apreço. Isso, porém, não me impediu de ter certas ressalvas com relação a algumas de suas obras – ou com relação ao conjunto da obra.

Um dos principais aspectos a me causa incômodo é o modo como o escritor retrata as mulheres. Por mais que eu goste do modo como ele lida com o sexo e com as relações humanas, o fato de que os homens e mulheres parecem ser encarados ocupando papéis constantes em seus livros – eles sempre aventureiros no que tange às relações, elas sempre sonhadoras e buscando o amor (a possível exceção de Sabina, é verdade).

Finalmente, ao ler A brincadeira, primeiro romance de Kundera (escrito em 1965 e publicado em 1967, ou seja, às vésperas da Primavera de Praga), consegui livrar o escritor do estigma de machista que eu lhe havia imputado (acompanhando parte da crítica). É a primeira vez que leio, em suas obras, menção clara ao fato de que o comportamento humano é moldado por construções sociais e que elas são ilusórias, de que persegui-las não torna as pessoas mais felizes.

O livro é, basicamente, a história de um reencontro e de uma vingança: Ludvik Jahn, quando era um estudante, enviou – por brincadeira – um cartão com os dizeres “O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade! Viva Trótski!” para uma namorada, Marketa. O cartão acaba nas mãos de seus superiores no Partido Comunista, que o acusam de trotskismo, cinismo e subversão. Ludvik busca o auxílio de seu amigo Zemanek, líder do comitê do partido na universidade. Zemanek, porém, não quer que Ludvik seja expulso apenas do partido, mas também impedido de continuar seus estudos.

Anos depois Ludvik conhece a mulher de Zemanek, e a seduz para vingar-se. Reencontra, também, outras personagens de seu passado – inclusive Lucie Sebetkova, seu grande amor e fantasma maior de sua vida.

Lucie, aliás, é uma das mais interessantes personagens que já encontrei na literatura. Sem protagonizar a obra em nenhum momento e só existindo quando é enunciada por outros personagens, ela é um de seus pontos centrais. Ao mesmo tempo em que a história de amor mal-resolvida entre ela e Ludvik é fruto do problema gerado pela brincadeira do cartão, esse romance também gera uma série de problemas e reflexões. Quiçá até o próprio cartão se justifique pelo rompimento entre os dois – de maneira retrospectiva, filosófica e bastante confusa, é verdade.

E é Lucie, também, o motivo de eu ter abandonado muitas das minhas ressalvas quanto a caracterização que Kundera faz das mulheres. É, também, a história dessa personagem-fantasma, dessa personagem apenas semi-existente,  que traz à tona o tema central de A brincadeira: o fato de que a história é o pior inimigo do homem, inevitavelmente o levando a uma direção negativa e o destruindo.

E justamente encontro a grande força do livro. Todo ele é como o cartão que Ludvik envia a Marketa: uma brincalhona ode ao pessimismo. Algo que acaba sendo bastante próximo da filosofia de Emil Cioran – com quem, aliás, Kundera compartilha a grande influência nietzschiana.