Escrever essa resenha se torna uma tarefa cada vez mais acabrunhante na medida em que minha memória me permite retomar os versos que Josely Vianna Baptista trouxe ao português. O ônus no que concerne à palavra é deveras grande, pois é ela que faz a ponte entre o humano e o divino na crença dos Mbyá-guarani, é ela que cria e recria o mundo a cada conto e reconto. Roça barroca, livro compilado à luz desse fato, cultiva com a reverência e o respeito histórico devido à tradição indígena que procura trazer a lume.

Antes de adentrar nas majestosas lendas que constituem o coração do livro, é preciso que se traga ao conhecimento do leitor o longo e árduo processo que foi a compilação deste. O primeiro a conseguir ter acesso aos cantos mbyá-guarani foi o pesquisador León Cadogan, por ocasião do livramento de um indígena que iria ser condenado injustamente. A versão que lhe foi concedida, entoada pelo cacique Yro’ysã, foi publicada no Boletim de Antropologia da USP em 1959.

O prefácio do livro, “Catecismo da Beleza”, foi escrito pelo autor paraguaio Augusto Roa Bastos. Ele esteve presente em São Paulo, em 2003, para o lançamento de seu livro Vigília do almirante (também traduzido por Josely), ocasião em que ouviu fragmentos da primeira versão dos versos traduzidos pela autora de Roça barroca. Nesse texto introdutório ficamos conhecendo o longo percurso que percorreram os cantos dos Mbyá-guarani e também a empreitada de proporções titânicas enfrentada pela tradutora e autora Josely Vianna Baptista para chegar à obra na versão a que temos acesso.

Roça barroca é um livro que transborda em esmero e reverência. A autora não poupou nos detalhes em tudo o que concerne os cantos, ela se baseou tanto na versão de León Cadogan como também no material recolhido quando das suas visitas às aldeias na região do Guairá. Após os cantos (que contam com o texto original e o traduzido) há todo um estudo sobre a composição semântica e lexicográfica dos versos, entrelaçando história, gramática e, porque não, política.

Para complementar, a autora, que tem livros de poesia publicados, nos brinda com algumas de suas composições, evidentemente inspiradas no universo mitológico dos índios cujos cantos trouxe ao português. A gama de sensações e imagens suscitada pelos versos cria um impacto sinestésico digno de uma epopeia em pequenos fragmentos, lastreada nos pequenos elementos para crescer em esplendor. Ainda mais quando a palavra está, mais do que o normal, investida de prerrogativas tão fundamentais como está no âmbito dos cantos Mbyá-guarani.

Reconhecida a valorosa jornada da autora, passemos então aos cantos propriamente ditos. O livro conta com os três primeiros cantos: “Os primitivos ritos do Colibri”, “A fonte da fala” e “A primeira Terra”. Nesses, vários elementos da cosmologia e cosmogonia guarani são explorados e aparecem se entretecendo na própria vida e dinâmica presentes no cotidiano e nos rituais dos guaranis.

Os cantos contêm elementos observados cotidianamente, que fazem parte da vida dos guaranis de modo imediato, e congrega-os a esfera divina na medida em que os dota de significado por meio de sua inserção no mito. Isso pode ser observado no seguinte trecho:

“Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,
a sós foi desdobrando a si mesmo
do caos obscuro do começo.
(…)
Sobre a fronte do deus
as flores do cocar
– olhos de orvalho
Entre as corolas do cocar sagrado
o Colibri, pássaro original,
pairava, esvoaçante.” (p. 25)

Não se trata, pois, de um simples colibri, mas de um animal cujas raízes mitológicas (e nesse sentido também históricas) lhe dotam de novo significado: ele é o “pássaro original”, sua descendência remonta aos idos mais ancestrais da criação do universo. Isso ocorre não só com outros animais como também as práticas culturais, rituais, de cura e interpretação do mundo.

A fala aparece como conhecimento proveniente da sabedoria do Pai criador, que a fez aflorar para sua criação para que dela emanassem bons frutos:

“Tendo aflorado [Ñamandu, o Pai verdadeiro], a sós, a fonte da futura fala,
e desdobrando, a sós, um pouco de amor;
tendo criado, a sós, um breve som sagrado,
ele refletiu longamente
sobre com quem compartilhar a fonte da fala;
sobre com quem compartilhar o amor,
com quem partilhar as fieiras das palavras do som sagrado.
Depois de muito meditar,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador
desdobrou-se em quem refletiria
seu ser-de-céu.
(…)
criou o Ñamandu de Grande Coração
Para que fosse o pai de seus muitos filhos vindouros,
o verdadeiro pai das almas dos numerosos filhos vindouros” (pp. 35-36)

Os cantos contêm toda a arquitetura mítica do universo de significados e sentidos dos guaranis, e não se encontra em instância separada da vida dos homens: ela é a substância entranhada nas suas práticas mais cotidianas, desde a organização social, a designação de tarefas, os rituais religiosos, na compreensão da natureza circundante e da sua própria existência enquanto ser.

Espero que a obra de Josely Vianna Baptista sirva de catalisador para os esforços de tornar cada vez mais pública essa rica cultura. Tenho certeza de que existem muitas pesquisas sobre os diversos grupos indígenas brasileiros, trabalhos que procurem compreender a peculiaridade de seus costumes, organização social, cultura, etc. O detalhe é que não estejam se tornando públicos com tanta extensão quanto gostaríamos, ou pelo menos não como tantas outras coisas que se tornam difundidas demais. Nesse sentido, Roça barroca assume ainda mais o status de grande obra.