O que esperar de um romance robusto, no que diz respeito ao número de páginas, escrito por um rapaz de vinte e três anos? De fato ter essa idade no fim do século XIX não trás as mesmas implicações para quem a possui nos dias de hoje, e assim Thomas Mann estreou no mercado editorial com um romance que, longe de ser sua obra mais madura, demonstra todo um cuidado e aplicação que faz de “Os Buddenbrooks” um romance de narrativa e personagens cativantes.

O livro, dividido em onze partes, narra a história de três gerações de uma família de comerciantes bem sucedidos, residentes da cidade de Lübeck, norte da Alemanha, e os bastidores da vida política e social local, nos anos de 1800. No Brasil, em edições mais antigas, a capa trazia junto ao título o complemento “decadência duma família”, o que já deixa claro o ponto de chegada da trama, mas isso não diminui em nada o fôlego e a capacidade de sedução da narrativa diante de suas mais de seiscentas páginas.

O romance tem início em uma espécie de reunião familiar em que os personagens mais significantes na história estão presentes e são descritos de modo a deixar claro todas suas peculiaridades, manias e trejeitos, sendo cada personalidade traçada de maneira a marcar seu papel e postura no transcorrer da obra. Em cada um deles é possível encontrar um correspondente em uma família de qualquer lugar e época: a Consulesa Buddenbrook, como a matriarca que cuida de todos, inclusive dos que não são seus filhos, com cuidado e preocupação; o Cônsul, velho Johann Buddenbrook, dono e administrador competente dos negócios da família; e seus filhos Thomas (Tom), Christian e a irresistível Antonie (Tony), além é claro de vários tios, sobrinhos e outros agregados. Essa aproximação dos Buddenbrooks com famílias reais se deve pelo fato de Thomas Mann ter se inspirado na própria família para a construção de seus entes fictícios. A exemplo disso temos a sutil caracterização da Consulesa Buddenbrook: “Apenas o feitio e a mobilidade dos olhos escuros indicavam a linhagem semilatina…”, essa simples citação nos permite ver na matriarca fictícia uma ligação, mesmo que breve, com a mãe do autor, Julia Mann, nascida em Paraty (RJ), filha de um alemão e uma brasileira. O próprio Thomas Mann, ao que tudo indica, colocou um pouco de si nos personagens Christian e Hanno (mais neste, menos naquele), vistos como as ovelhas desgarradas da família devido a sua inclinação pelo mundo das artes, da música, do teatro e afins.

A princípio os Buddenbrooks encontram-se no auge de seu poder político, financeiro e comercial, e aos poucos o autor nos leva a identificar os personagens mais significativos para o romance: Tony, ao redor da qual gira praticamente a primeira metade do livro, e Tom, no restante. Essa espécie de divisão acompanha o tom da prosa. Tony – desde sempre uma menina abusada, viva, cheia de emoções e vontades, portadora de um nariz que empina junto com um movimento para trás de sua cabeça, mexendo os cabelos – representa o período áureo da família, apesar de seus casamentos mal sucedidos. Um dos episódios mais marcantes se dá quando de sua estadia em uma praia, na companhia de um casal amigo e seu filho. Tony e o rapaz, humilde, se apaixonam. Como é de se esperar o romance é bruscamente interrompido, pois Tony teria prometido sua mão a um comerciante aparentemente próspero. Tudo isso ocorre na juventude da menina, no início da obra, e não chega a ser retomado de maneira importante. Enquanto isso, Tom, sempre retratado como o mais responsável, disposto a aprender ao máximo o papel a desempenhar na empresa da família, se mostra de certa forma melancólico, taciturno, representando a outra metade do romance, dedicada à decadência da família, culminando com a liquidação da empresa – motivada por incompetência administrativa, excesso de gastos, etc. – pouco depois de essa completar cem anos de atividade.

Nascimentos e mortes indicam as diversas mudanças que ocorrem na vida dos personagens e na distribuição desses dentro da ordem familiar e social. Um pouco antes de morrer, o Cônsul Buddenbrook passa seu cargo para Tom, que será o último administrador do império e protagonizará diversas investidas contra o irmão Christian, que não é tão afeiçoado ao trabalho quanto a família gostaria.

Mas é praticamente impossível não se apaixonar por Tony. Apesar de muitas vezes acusada de infantil, no fim de tudo ela mostra-se muito mais forte e preparada para lidar com as dificuldades que foram se apresentando sistematicamente em sua vida, seja nos malogros de seus casamentos, seja na dissolução do patrimônio financeiro e humano da família, até mesmo no casamento conturbado de uma filha, próximo ao fim do romance. Próximo ao fim também há a presença de Hanno, filho de Tom com sua esposa, Gerda, uma mulher em certos aspectos fria, de origem holandesa. Não há palavras para designar Hanno adequadamente. Incômodo, vazio, inexpressivo em excesso, parecendo caracterizar realmente o fim de uma linhagem, incapaz de lidar com os negócios, nem mesmo com as próprias vontades e desejos, que desconhece. É possível, assim, ver um caminho reluzente se iniciando em Tony e obscurecendo no percurso, passando por personagens cada vez mais melancólicos, finalizando em Hanno.

A verdade é que “Os Buddenbrooks”, por ser inicial na carreira de Thomas Mann, aponta para as principais problemáticas da obra do autor, figurada nos conflitos entre a vida do artista e a configuração de uma sociedade burguesa e, de certa forma, o tratamento da disposição artística como uma decadência biológica humana, pensamentos comuns e em discussão na virada do século XIX para o XX. Típico romance burguês, a ordenação dos acontecimentos é sedutoramente construída por uma prosa que lhe rendeu o Nobel de Literatura em 1929. Carregado de questionamentos filosóficos, como todo bom clássico alemão, apesar de se fazer de maneira muito mais suave, “Os Buddenbrooks” merece um lugar privilegiado na famigerada Weltliteratur.

Sobre o autor: Sérgio Ferreira cursa Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com ênfase nas Literaturas do Brasil e da Alemanha. Quando tem tempo gosta de escrever resenhas, ensaios e contos.