No começo desse ano falei sobre o perturbador Quarto, onde toda a narrativa sobre um cativeiro é feito pelos olhos de uma criança que vive dentro de um cômodo sem saber que sua mãe e ele, consequentemente, são vítimas de um sequestro. A história é toda contada de uma forma inocente, e conforme nos aprofundamos no subtexto, percebemos o quanto é cruel e visceral ver um crime hediondo através de uma criança – pela falta de malícia e amadurecimento. Afinal, nem toda criança consegue distinguir um xingamento, um soco ou qualquer tipo de transgressão como uma maldade. Em Festa no covil, do mexicano residente de Campinas Juan Pablo Villalobos, temos uma inversão: o mundo do narcotráfico é visto através dos olhos do filho de um grande traficante que apenas está aprendendo os valores de se viver em bando, de dizer a verdade e de ser macho, e não maricas.

Tochtli não sabe o que é uma mãe, tampouco sabe o que são limites, sua rotina é estudar, pesquisar, colecionar chapéus e descobrir palavras exóticas. O garoto gosta de bancar o detetive e esse é um dos maiores atrativos do livro, afinal, ele não quer desvendar crimes – o que seria um prato cheio vivendo na casa em que está -, mas na verdade quer descobrir o que há nos quartos vazios do gigante palácio em que vive com seu pai, a quem não pode chamar por essa alcunha, apenas pelo nome Yolcault, e porque demora tanto para conseguir seus hipopótamos anões da Libéria. A crueldade infantil impregnada no discurso de Tochtli é assustadora em diversos momentos, em muitos deles parece ser mais cruel que um chefe de narcotráfico e muito mais sádico ao explicar a diferença entre morto e vivo. Por mais cruas que pareçam suas descrições e sua “inocência”, as consequências de ser uma criança num habitat longe da infantilidade lhe dá um problema de adulto: gastrite.

Em suas míseras 80 páginas, Festa no covil prende o leitor no mundo fantástico de Tochtli. O quão terrível será o destino dele quando cadáveres surgem nos noticiários, e Yolcault ora aparenta preocupação, ora diversão. Através da narrativa não é possível distinguir o bem do mal, o mal do bem, tudo parece normal. Para o próprio leitor é quase impossível não dar risada das interpretações irônicas do menino acerca de pessoas cultas, pessoas enfiadas dentro de livros que não conhecem a vida como ela é – uma ironia, se levarmos em consideração que ele nunca sai de casa e grande parte de sua vida se baseia numa rotina cercada de mimos e de obrigações frouxas. Os maiores ensinamentos de vida vêm de filmes e do noticiário, das fofocas feitas pelos capangas e empregados isolados do mundo. O próprio narrador os classifica como o bando mais destemido em um raio de oito quilômetros.

Grande parte das inversões deste romance vem de como Tochtli emprega as palavras que aprendeu: sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante podem ser de total deboche, enquanto em muitos momentos são carregadas de uma frieza digna de um sociopata. Muitos aspectos da psique do garoto o fazem parecer mais maduro do que é, inclusive em uma passagem quando se julga um maricas ao chorar na frente do pai. Momentos como esse mostram que ele ainda é uma criança, não importa o quanto o discernimento narrativo engane o leitor. Para quem lê, o ruim é o ambiente e o tipo de educação que o menino recebe, enquanto para o próprio personagem-narrador não ter o que quer e chorar são sintomas de fraqueza no mundo dos homens.

Dotado de uma violência abstrata e sentimental, Festa no covil é um aforismo – uma fantasia deturpada – que mostra como a formação, ou desvio, de um caráter não está ligado estritamente a traumas, mas ao reflexo que uma criança toma para si e o que ela considera como direito. De longe, um dos livros que ocupará o posto de melhor do ano graças a uma narrativa sucinta e, de certa forma, sórdida, como diria Tochtli.