Esqueça a Paris boêmia, romântica e cosmopolita cuja imagem você está acostumado a ver em livros, filmes, músicas e fotos turísticas. I burn Paris (Eu queimo Paris, em tradução livre) desconstrói essa imagem da Cidade Luz e constrói em seu lugar uma metrópole tomada de conflitos políticos, de exploração e de ânimos exaltados a ponto de explodir a qualquer momento. Essa é a imagem subversiva que nos propõe o escritor polonês Bruno Jasiénski.

O cenário parisiense realmente parece estar prestes à pegar fogo. O início da trama se dá com Pierre, um trabalhador que encontra nas reduções de pessoal, na automação industrial e na crise econômica sua demissão. Revoltado pelos múltiplos expedientes de dominação e subordinação nos quais se vê enredado, Pierre perambula pela cidade francesa fazendo saltar aos olhos suas trevas noturnas, cheias de criaturas misteriosas e bizarras, uma verdadeira jornada onírica, não de doces sonhos, mas de um pesadelo contado em um crescendo.

A história, no entanto, não é contada somente através da visão de Pierre, mas de outros sujeitos cujos destinos estão, hora ou outra, entrelaçando-se precisamente na capital francesa. Outro dos personagens da obra de Jasiénski é P’an Tsiang-kuei, um jovem chinês que estuda num colégio religioso do qual é logo expulso por ter preferências literárias e ideológicas que destoam daquelas que preconizam a vida monástica. Após deixar o internato por conta de sua identificação marxista, P’an Tsiang-kuei passa a trabalhar nas minas que pertencem aos países imperialistas (chamados por ele de “homens brancos”), experimentando na pele a situação descrita por Marx e Engels com relação aos trabalhadores. Contemplando a situação de penúria e vileza a que são submetidos seus pares, torna-se um militante fervoroso, indo, inclusive, a Paris para tentar consolidar lá a revolução.

E assim Jasiénski começa a costurar as tramas. P’an Tsiang-kuei chega a Paris no mesmo momento em que Pierre, o trabalhador desiludido e irado, resolve deflagrar o pandemônio na Cidade Luz através da contaminação de todos os habitantes pela água, por meio de um vírus ao qual ele consegue deitar mão. O insólito toma conta do palco central à 14 de julho (o dia em que, no ano de 1789, a Bastilha foi tomado e a Revolução Francesa consolidada), quando muitas pessoas começam a morrer e os ânimos, até então contidos, se extravasam.

Os subúrbios parisienses se enfeudam. Passa a haver uma divisão nítida, defendida com unhas e dentes, que intenta a insularização de cada bairro e de cada população, onde se fecham trabalhadores de um lado e patrões de outro, numa divisão que se mostra emblemática para compreender o ainda mais incrível desenrolar da trama.

A atitude extrema de Pierre cria as condições para que os conflitos latentes tanto na realidade parisiense como em escala, ligados às desigualdades de classe e seus desdobramentos, venham à tona de modo explosivo. Assim como se contrapunham dois principais modelos de sociedade, baseados em ideologias e governo extremamente contrários, também a geografia de Paris se desenhou principalmente a partir dessas duas direções. Isso sem contar ainda as diferenças religiosas e étnicas, que contribuíam para acentuar o potencial explosivo.

Além das tramas do militante chinês e do trabalhador revoltado, Jasiénski ainda coloca outros personagens para dançar e ajudar a desvendar outras facetas da crise que se estabelecera na cidade francesa, que, aliás, encontrava-se a essa altura lacrada por um cordão de segurança que a punha de quarentena. É assim que conhecemos o rabino Eliezer ben Zvi, obstinado em defender sua comunidade e seus princípios judaicos; o magnata David Lingslay, que vive um dilema entre salvar a própria pele ou arriscar a segurança de um país inteiro; o Capitão Solomin, um militar cujo passado familiar está emaranhado com os eventos que sacudiram a Rússia czarista e outros mais.

Como já deve ter dado para perceber, a história criada por Jasiénski não tem nada de comum. O escritor recria Paris de uma forma subversiva, com uma linguagem rebuscada e pontilhada de adjetivos fortes e intensos, que enchem de vida os eventos extraordinários que tomam conta de I burn Paris. O desfecho da crise desencadeada por Pierre é um dos pontos altos do livro, o qual, tenho certeza, irá chocar os leitores que alimentam a imagem romântica de Paris. O glamour dá lugar à sobrevivência, a boemia dá lugar ao engajamento coletivo, os jardins das Tulherias à plantações agrícolas e assim por diante.

Jasiénski, através de uma rica prosa, nos leva a passear por uma Paris que nem de longe lembra aquela pela qual andaram Hemingway e os boêmios da Geração Perdida nem a romântica e cosmopolita da Belle Époque. A Paris de Jasiénski se parece bem mais com aquela convulsionada pelos sans-culottes e camponeses no julho de 1789, só que agora em uma versão moderna, marcada por novos horizontes políticos e novas dinâmicas de dominação, resistência e luta. Enfim, uma mistura tão interessante quanto controversa.