Há uma dubiedade bastante notável nos escritos de John Steinbeck da década de 30. Se para a direita conservadora estadunidense do período suas obras tinham uma “coloração” por demais vermelha, para a esquerda radical elas pecavam pela falta de combatividade ao sistema capitalista em seus pilares. Em que se pese a abordagem profundamente questionadora de suas obras (principalmente as da década de 30 e em especial sua opus magnus, As vinhas da ira), Steinbeck manifestou uma curiosidade que certamente não lhe era exclusiva: queria saber o que era a União Soviética de que tão mal se falava e tão virulentamente se demonizava.

Um dos primeiros indícios de que sua curiosidade não era algo isolado foi o fato do autor ter conversado em um bar com Robert Capa a respeito do assunto. Tendo descoberto a afinidade do fotógrafo nesse quesito, resolveu começar os preparativos para partir em uma viagem para a União Soviética, a qual foi levada a cabo em 1947. O relato dessa viagem, ilustrado com algumas fotos de Capa, foi publicado em 1948 sob o título Um diário russo.

John Steinbeck quis valer-se nesse livro tanto de sua arte literária quanto de alguns dos pressupostos que norteavam seu ofício de jornalista, conforme nos informa logo nas primeiras páginas do livro:

“Todos os dias os jornais publicavam milhares de palavras a respeito da Rússia. (…) tudo isso comentado por gente que nunca havia posto os pés lá e que se baseava em fontes nada insuspeitas. Foi então que nos ocorreu que havia outras coisas que ninguém mencionava sobre a Rússia, e era bem isso o que mais nos interessava. Que tipo de roupa os russos estavam usando? O que comiam no jantar? Como eram suas festas, se é que havia alguma? O que era servido nelas? Como eles namoravam, e como morriam? (…)” ( p. 8 )

Posto aos dois aventureiros essa tarefa, partiram para uma estadia que não enfrentou poucos percalços. Steinbeck caíra de uma janela pouco antes da viagem e não estava completamente recuperado à hora da partida, e Capa, entre outros contratempos, encontrara mil e um problemas a respeito das restrições quanto às fotos, filmes, máquinas, luzes de flash e outros apetrechos relativos à fotografia. A preocupação do regime stalinista nesse sentido nunca deixou de ser altamente severa.

Os dois buscaram não permanecer no circuito restrito que o governo procurava lhes impor. Eles queriam conhecer os detalhes mais cotidianos da vida diária dos russos, descobrir em que medida se vivia igual ou diferentemente dos Estados Unidos. É assim que acompanhamos a dupla perambulando por diversas localidades do país e conversando (na medida em que o obstáculo linguístico lhes permitia) com toda a sorte de pessoas.

Visitamos desde centros de distribuição de alimentos até aeroportos e o serviço vagaroso que esses últimos oferecem, passamos por vilas rurais onde conhecemos os frugais jantares que eram ofertados e as animadas festas que eram feitas, conhecemos as associações de escritores do país, as limitações artísticas da censura, a dinâmica mais proximal dos aparatos do governo, as vestimentas dos trabalhadores, os trabalhos diários, as brincadeiras das crianças, as histórias das velhas, as riquíssimas canções e lendas que eram passadas oralmente de geração a geração, o rosto urbano das cidades soviéticas em reconstrução no pós-guerra, etc.

Em Um diário russo você certamente não vai achar tratados políticos, análises conjunturais sobre as benesses do capitalismo e as promessas do sistema comunista, nem mesmo estudos econômicos complexos baseados em dados estatísticos. Aqui a experiência, o vivido, tem papel primordial, funcionam não só como o fôlego de matéria-prima como também o cerne de toda a escrita nele contida.

Pelos olhos de Steinbeck vemos se desenrolar um cenário que certamente se opõe a diversos estereótipos construídos a respeito da misteriosa Rússia, mas que em outros momentos os corrobora. Steinbeck encontra-se em casa quando fala sobre o campo, é lá que ele nos põe em contato com todo o primor e conhecimento de sua própria vida, de modo que, para além de espectros estruturais do capitalismo e do comunismo, brote uma simpatia singular para com os sujeitos em seus universos de vivência.

Nos recônditos da experiência do indivíduo, no seu lugar e em seu modo de vida, é que Steinbeck encontra o terreno que lhe permite trazer à tona as contradições de ambos os sistemas sem tocar em jargões, termos técnicos ou conceitos-chavão. É nesse terreno que se situa o melhor de Um diário russo, tanto verbalizado quanto fotografado, apesar das dificuldades de censura que Capa encontrou.