Lorena, Lia e Ana Clara são as meninas de Lygia Fagundes Telles. No contexto da ditadura militar, elas moram juntas num pensionato de freiras em São Paulo. O ano é 1973.

Lorena Vaz Leme vem de uma família tradicional, descendente de bandeirantes, estuda direito e é a mais intelectualizada. Tem mania de limpeza e é criteriosa até na hora de preparar um chá (não se pode deixar a água ferver). É virgem e fantasia um relacionamento com M.N., um médico casado.

Lia de Melo Schultz é filha de uma baiana com um alemão que se envolveu rapidamente com o nazismo por pura alienação. Foi na faculdade de Ciências Sociais que ela conheceu o movimento estudantil e começou a estudar Marx e etc. Seu namorado, Miguel, está preso pela participação no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.

Ana Clara Conceição tem uma origem humilde, mas é tão bonita quanto uma modelo. Acabou se envolvendo com drogas por causa de traumas de infância. Está prestes a se casar com um rapaz rico, mas ama o namorado traficante. Quer fazer uma cirurgia para voltar a ser virgem antes do casamento e pretende destrancar a faculdade de psicologia.

A polifonia é algo interessante da narrativa de Lygia Fagundes Telles em As meninas. Não existe um narrador onisciente. As meninas se revezam contando a história subjetivamente. Mesmo que o pronome esteja na terceira pessoa, só enxergamos os acontecimentos a partir do ponto de vista das personagens centrais. Essa mudança de narradora que acontece até no mesmo parágrafo, como é alardeado na introdução, sequer interrompe sequências cronológicas e deixa o livro mais dinâmico.

“Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços, a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios, era a glória. Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do olho que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno.” (Lorena)

Lorena, Lia e Ana Clara são personagens tão bem construídas que até eu, que não tenho o hábito de imaginar rostos, criei uma fisionomia para cada uma delas. Posso ver até agora os cabelos lisos e a magreza de Lorena vestida numa malha preta. Lia com roupas largas e aquele cabelo rebelde, pixaim mesmo. Ana Clara elegantérrima com olhos azuis e cabelos ruivos numa escova modelada. Se duvidar, posso ouvir a voz de Lorena, que é esganiçada e fraca, apagada como a própria personagem.

Apagada, não insignificante. Li em algumas resenhas que Lorena seria a personagem principal, mas para mim as três se complementam. É uma viagem ficar transitando entre as subjetividades das meninas. Lia e sua preocupação com os problemas factuais do mundo. Ana Clara com suas bad trips que remetem a seus traumas, inclusive de abusos sexuais, nos faz quase sentir o efeito das drogas. Lorena tem um discurso intelectual, citando teóricos, cantores, poetas e criando suas próprias filosofias. Não é por menos que As Meninas ganharam o Jabuti de melhor livro em 74.

As meninas
Lygia Fagundes Telles
304 Páginas
Preço sugerido: R$41,00

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Sobre a autora: Luisa Pinheiro, parte vertigem, parte linguagem. Maranhense que estuda jornalismo na UFSC e é mestre em perder voos. Também escreve no Doses de tiquira.