Ultimamente tenho descoberto verdadeiras pérolas em escritos que há algum tempo  evitava a todo o custo. Sou um leitor inveterado de romances, procurei sempre prezar pela leitura deles, e faço abertamente minha mea culpa de praticamente não ler poesia. Foi, entretanto, em contos, ensaios, diários de viagem, coletânea de artigos, etc., que tenho encontrado literatura e histórias de altíssima qualidade. No caso de Haruki Murakami, depois de encarar o ótimo Kafka à beira-mar e o longuíssimo 1Q84, resolvi ler Do que eu falo quando falo de corrida, e acabei descobrindo um livro espirituoso e – por mais que essa seja uma palavra “gasta” pelo seu uso inadvertido e exaustivo – inspirador.

Faz tempo que sou um aspirante a corredor. Melhor, deixem-me reformular minha colocação: faz tempo que aprecio uma corrida. Nada de competições ou maratonas (estou muito aquém disso), mas sim de correr pela rua, sentindo o vento, suando, ouvindo música e podcasts e pensando a respeito da vida, do universo e tudo mais. Por favor, se por acaso estiverem com a imagem idealizada de um corredor profissional nas suas mentes, apaguem-na imediatamente. Não é nada disso, sou só um aspirante, um corredor de ocasião.

Não sei se foi por isso ou não, mas essa coletânea de artigos e ensaios que Murakami escreveu sobre o assunto “corrida” me cativou profundamente. Você não vai achar nada de genial ou brilhante nesse livro, o que está longe de ser, ao contrário do que pensa muita gente, um motivo para você não lê-lo. É um livro escrito com carinho por alguém que cultiva a corrida como um estilo de vida mais do que necessariamente uma prática com vistas à saúde ou como alimento para o ego. Justamente essa relação afetiva com a corrida que faz o livro ser tão caloroso em suas linhas.

Murakami nos revela seus cacoetes no que diz respeito à corrida, sua preparação, que músicas coloca em seu walkman, que tênis gosta de usar, como se sente ao correr, como seus músculos e tendões reagem ao exercício, o que come para ficar melhor preparado, como correr o ajuda a escrever e levar a cabo sua carreira de romancista, etc. Enfim, Do que eu falo quando falo de corrida é um livro que procura transmitir ao leitor o que a corrida representa para a vida de seu autor.

Murakami correu diversas maratonas e tirou delas algumas lições que procura levar para sua vida e para seu trabalho, embora ele diga que não pensa em seus romances quando está correndo. A combinação escrita e corrida é deveras inusitada e parece difícil conceber como aquele escritor cujas histórias você curte é também um maratonista e praticante de triatlo. As histórias que ele tem para contar a respeito dos eventos que participou, dos lugares nos quais já correu, das pessoas com quem travou contato e dos aspectos mais banais do cotidiano de um corredor são o que enchem o livro de vida e o deixam com um tom intimista instigante e acolhedor. Parece mesmo é que você está ali batendo um papo com Murakami.

Outro motivo que faz com que o livro seja gostoso de ler é a sinceridade que dele emana. Murakami não tinha pretensões filosóficas ao escrever o livro e por isso não força metáforas nem epifanias nem nada disso. Ele é “simplesmente” um cara que gosta de correr e acha que apresentar algumas histórias e alguns detalhes de sua vida como corredor pode ser legal e, quem sabe, dependendo do leitor e sua subjetividade, possa vir a ter algum significado mais amplo nesse sentido.

Isso é uma das melhores coisas do livro: a única analogia que ele faz é que a corrida guarda algumas semelhanças com o ato de escrever. Se alguém quiser, pode extrair lições filosóficas e elucubrações metafísicas até do ato de espalhar margarina numa fatia de torrada, mas Murakami – ainda bem – não faz nem pretende fazer isso.

Do que eu falo quando falo de corrida não é um manual de métodos de corrida, de como melhorar o desempenho, que equipamentos usar, quais músculos deve-se desenvolver nem nada disso, é um conjunto de relatos – formatados em artigos e alguns ensaios – que explora a corrida como uma atividade que está além de mera estimulação muscular (mas que nem por isso é absolutamente pragmática em todos os sentidos da existência humana) e que consegue inspirar o leitor pela simpatia com que o Murakami dela nos fala. Um livro simples, leve e despretensioso, mas nem por isso raso nem artificial.