Judas Iscariotes é deveras uma figura emblemática e misteriosa, seja para os cristãos, seja para aqueles que vivem de alguma forma sob a sombra dessa crença, praticantes dela ou não. Leonid Andreiev (1871-1919) se interessou pelo personagem e resolveu tecer suas considerações a respeito dele através de uma história em que constrói uma peculiar imagem de Judas.

Andreiev é conhecido principalmente por suas peças e histórias curtas, entre as quais podemos encontrar um fatalismo ora visceral ora melancólico, onde a morte (ou a proximidade dela) desempenham o papel de catalisador de emoções e destino inevitável. A morte molda a vida de várias formas, imputando a ela a consciência pungente de que, por mais brilho que ela possa ter, apagar-se é seu final irrevogável e estar sob a sua sombra é a condição dos vivos.

O interesse de Andreiev pela psicologia e psiquiatria o muniu de importante conhecimento sob a psique humana, que transparece nos estudos dos comportamentos de seus personagens, descrevendo com maestria suas emoções e reviravoltas espirituais. Sua abordagem de Judas tem muito desse estudo, pois ele procura compreendê-lo não como a figura mítica criada pela religião, mas como um ser humano que era movido pelos mesmos mecanismos espirituais e fisiológicos que qualquer um.

Por isso é que a novela Judas Iscariotes (talvez possa ser chamado de conto também) se torna tão interessante: Judas Iscariotes, em que pese a aparência grotesca que possui, é feito de carne e osso (e falibilidade) tanto quanto eu e você. Por sua condição humana (e não divina), Judas estava submetido a todos os condicionamentos que estavam também os outros apóstolos e todas as pessoas que cercavam Jesus e os doze durante suas pregações e peregrinações.

Andreiev conduz o leitor a não aceitar o fardo de traidor que tão predominantemente é imputada a Judas, pelo menos não sem se dar ao benefício da relatividade (e, consequentemente, da dúvida). Ele matiza a alcunha que Judas carrega, “O Traidor”, buscando colocá-lo em pé de igualdade com os outros apóstolos. Ele não era um emissário das trevas, como parecem querer supor algumas crenças, ele era “simplesmente” humano.

Há momentos em que nos enraivecemos com Judas, quando ele age de forma torpe, insultando alguém ou ameaçando outrem sem motivo algum. Em outros, temos compaixão, como quando ele age de forma solidária com outros apóstolos ou quando se digladia consigo próprio, imerso em arrependimento por ter vendido Jesus Cristo, por quem mantém um respeito e admiração filiais. E ainda, em outros momentos, o tememos, pois as descrições de Andreiev a respeito de seu aspecto físico e suas atitudes criam um mal estar sensível em torno de sua figura.

É inusitado e interessante ver Judas como uma pessoa comum ao invés da encarnação do mal como ele é costumeiramente representado. Representando-o como um homem comum, Andreiev coloca no mesmo patamar que a humanidade não só Judas em relação a sua existência, mas também em relação ao seu pecado. Judas vendeu Jesus por trinta moedas de prata, mas qualquer um podia ter feito isso, já que ele é um homem como qualquer outro.

Além disso, há de se pesar que Jesus não teria sido crucificado se não tivesse sido talhada, antes da traição, uma cruz. Não teria sido vendido por trinta moedas de prata se não houvesse alguém disposto a pagar esse preço. O traidor não está sozinho em sua traição, afinal, é condição essencial para ela a existência de uma perseguição que justificasse a busca pelo nazareno, bem como soldados dispostos a chicoteá-lo, uma multidão que clamasse a soltura de Barrabás em detrimento da absolvição de Jesus, etc. Poderíamos seguir arrolando exemplos por linhas e linhas a fio.

O pecado de Judas não é maior que o de qualquer um desses sujeitos, por isso não se pode chamá-lo de “O Traidor” sem estender essa condição a todos os outros igualmente. Olhando assim a coisa toda muda de figura, e isso que nem entrarei aqui na seara daqueles que veem a traição de Judas como peça-chave do plano divino, de modo que, de acordo com essa visão, ele seria o maior injustiçado de todos os tempos.

Nos fazendo pensar sobre Judas, Andreiev nos coloca perante nós mesmos, pois levando em consideração a fama de Judas descrita por ele, pecador e posteriormente arrependido, vemos que essa é a situação existencial do homem. Se somos dignos do perdão (seja de Deus ou dos homens, dependendo de suas crenças), Judas também o é.

Embora Andreiev seja propositalmente dúbio a esse respeito – ele não defende nem condena Judas –, o mínimo que ele faz é nos colocar diante desse dilema. Matizando a figura tão disputada de Judas, Andreiev usa de um estilo “passivo”, digamos assim, para que, na suposta lacuna de julgamento que ele habilmente deixa, possamos inscrever nossos próprios juízos. Eis aí uma grande obra!