Não sei se ocorre com todo mundo pelo menos uma vez na vida, mas certa vez acordei no meio de uma noite pensando na ideia de como seria o meu enterro. Quem compareceria, quem espernearia, quem falaria bem, quem contaria piadas e, principalmente, quem seria aquele que mesmo sem ser convidado, ou avisado, apareceria para pedir desculpas. O motivo do óbito não passou pela minha cabeça. Somente observar como um ser onipresente, não como um espírito zombeteiro que não entende que aquele corpo já não mais me pertence, e sim ao pó e à terra. Em A passagem tensa dos corpos, primeiro romance do mineiro Carlos de Brito e Mello –  ganhador de um concurso de literatura do Governo de Minas Gerais que deu origem a esse livro lançado pela Companhia das Letras em 2009 -, o narrador discorre sobre mortes e relações entre os nomes das cidades, as razões que culminaram no óbito e sua espera incessante para poder relatá-las, à quem não sabemos logo de início.

Dividido em 156 capítulos nas suas cerca de 250 páginas, acompanhamos a narrativa em primeira pessoa de um pesquisador de mortes, um sujeito – e não seria bem essa colocação, afinal, ele não tem corpo ou mesmo identidade – que passa de cidade em cidade para averiguar se as pessoas que faleceram foram declaradas mortas – passaram por velório, enterro, se os parentes estão tristes. Nesse tópico o livro ganha vários pontos, as curtas passagens e a economia de descrição mexe com o inconsciente do leitor, despertando o interesse em tantas mortes mesmo sabendo que se tratam de dados e mais dados. Contudo, os capítulos não são de se consumir compulsivamente, apesar de curtos, muitos deles são prejudicados pela construção das frases e, em grande parte, pelo empenho de palavras um pouco enfadonhas e pomposas demais para caber dentro do contexto enxuto.

Ao negar uma experiência espiritual e se mostrar obcecado pela morte do personagem C., o narrador ganha pontos com o intenso suspense em torno do falecido que acompanha de perto – desde o estranho tratamento da mãe e filha até um casamento suspeito – e de sua própria identidade que desemboca nesse estranho emprego de relator de mortes pelas cidades. É nos momentos em que o ambiente parece irreal – por que uma família se recusaria a sepultar seu patriarca e, ainda por cima, o deixaria amarrado à uma cadeira? -, enquanto o narrador mescla essa cena com sua história pessoal, que o romance parece engrenar em um grande suspense mórbido e fantástico.

Essa teia de conexões e coincidências tem o seu valor e até certo ponto é explorado com forte vigor, contudo, ao se declarar uma energia – não um espírito, veja bem – que precisa se apoderar de um corpo, a narrativa perde sua força. Com o problema de construção de sentenças que seriam chave (o símbolo entre corpo é ação, espírito é inspiração) e com afirmações bisonhas sobre D’us e a morte, A passagem tensa dos corpos fica desinteressante e sua ironia não cativa, não por ser puxada para o humor negro, mas por realmente parecer deslocada da atmosfera criada pelo autor.

O mérito do livro está na sua estrutura, o texto segue como uma simbiose entre prosa e poesia, em muitos momentos ignorando parágrafos e adentrando em versos começados em minúsculas sem querer se prender a uma essência poética. É o que merece destaque, enquanto muitas narrativas tentam ser, mas não conseguem, e outras tentam ser e acabam em algo totalmente oposto desviando-se do caminho proposto inicialmente. Carlos de Brito e Mello parece ter certeza na estrutura que concebe, não se perde na construção – as lacunas dentro da narrativa são decorrentes de uma má exploração de personagens e não da base que solidifica a segurança da escrita.

A passagem tensa dos corpos é uma imensa aposta e um corajoso experimento que poderia ser melhor lapidado, mas também poderia ser um desastre completo – o que não aconteceu devido a sua primeira metade. Ou seja, Carlos de Brito e Mello mostrou que ousadia tem dois lados opostos, só é preciso tomar cuidado na hora da execução.