Depois de comprar O ventre da baleia por causa do título, e amealhar junto com ele O motivo, satisfazendo duas manias minhas – a de levar o título muito em consideração na escolha de um livro e gostar de ler vários livros do mesmo autor – eu resolvi que era hora de eu encarar logo a obra de Cercas da qual todos falam e a qual todos celebram: Soldados de Salamina, romance publicado em 2001.

Adentrar numa obra que possui tantas qualificações positivas pode toldar (por meio das altas expectativas) a leitura a uma frustração, mas acho que o livro de Cercas consegue lidar muito bem com todo esse processo de “pré-leitura”. De fato, é um livro muito bom e deliciosamente instigante, apesar do plot aparentar por vezes ser meio monótono.

Vou fazer uma breve sinopse e vocês vão entender porque ele parece ter essa imagem (enganadora, saibam já): Cercas conta a história de um momento de sua vida, o período em que havia desistido de escrever romances (depois de já ter publicado algum material) e trabalhava num jornal, escrevendo matérias para integrar o caderno cultural. Na busca de um assunto interessante para escrever por conta de uma data especial, ele se deparou com um tema clichê: a vida de José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange Espanhola. Contudo, descobre nas sombras dessa figura uma história que se anuncia diferente da usual: a enigmática trajetória de Rafael Sánchez Mazas, estreito colaborador de Rivera e autor da façanha de escapar de um fuzilamento.

Cercas passa, a partir desse momento, a dedicar seu tempo e esforços para conhecer mais sobre essa figura e como ele pode conseguir escapar da Espanha, apesar da vigilância dos comunistas inimigos da Falange. Como amante da História, essa é uma história – perdão pela repetição – que me interessa imensamente, mas pode-se pensar que aqueles que não querem se aprofundar em discussões históricas sobre a Guerra Civil Espanhola não irão gostar nada do livro. Ledo engano, como diria Heródoto.

Tão interessante como conhecer a vida, as ideias e o élan do pensamento e existência de Sánchez Mazas, é seguir junto com Cercas pelas suas pegadas. Ficamos tão obstinados pela enigmática façanha de Mazas que sintonizamos com Cercas, e passamos a acompanhá-lo no trilho aparentemente sem saída que é sua busca, que nos leva, inclusive, aos conselhos do famoso Roberto Bolaño.

Rafael Sánchez Mazas foi, ao lado de Primo Rivera, um dos ideólogos da Falange Espanhola e via o Fascismo, posteriormente encarnado na figura de Francisco Franco, como a solução para a situação espanhola. Cercas mostra como o pensamento de Mazas era bastante mais complexo do que essa simples rotulação partidária e como, apesar de seu alinhamento problemático e amplamente passível de crítica, havia uma miríade de aspectos e elementos formadores de sua opinião que nos faz ir além do entusiasta da Falange que ele era.

A batalha de Salamina – referência à batalha das guerras médias travada entre o exército grego e persa – foi lutada tanto por Cercas, contra todas as circunstâncias desfavoráveis a solução de seu mistério; bem como também por Sánchez Mazas, que em sua situação enfrentava um inimigo naquele contexto mais numeroso e poderoso.

Descer a um nível de detalhamento como desce Cercas não é algo fácil. Investigar uma trajetória individual num momento conturbado como foi a Guerra Civil Espanhola, onde os destinos parecem se enfeixar em fatalidades comuns, é uma tarefa que só pode ser levada a cabo a custa de muita pesquisa e paciência. Por isso é que a reconstrução da trajetória de Mazas é um dos méritos do livro.

Além desse, é um mérito também a maneira como se entrelaçam a vida de Cercas e de Mazas. Não que houvesse tantas proximidades assim, mas ambos possuem a literatura como uma tarefa entranhada em seu agir sobre o mundo, ambos enxergam a literatura como uma prática que deva despertar algo nos leitores, algo que os faça ver além do evidente. Ver a realidade banhando as palavras, ver a vida dos dois lastreando sua literatura é mesmo muito interessante. É uma relação visceral, e muito expressiva, que Cercas explora também em outros livros com uma visão instigante sobre esse conflituoso diálogo.

Confesso que quando descobri que o livro tratava da vida de um fascista espanhol, fiquei com um pé atrás. Achava que Cercas fosse descambar para um dos extremos: falaria mal de Mazas o tempo todo ou tentaria reabilitar uma figura histórica representante de uma ideologia e visão de mundo que sabemos ser perigosíssima. Apesar de, diante do balanço final, parecer ser a segunda opção – ainda que muito veladamente – acho que Cercas sustentou-se na corda bamba com um equilíbrio admirável.

Não acho que ele faça apologia a ideologias quaisquer, sejam de direita ou de esquerda. De qualquer forma, é um livro que mostra com maestria como o passado tem sua porção de imortalidade, uma vez que já se vão mais de 70 anos da guerra e ela encontra-se de tal maneira viva que ainda enseja livros como Soldados de Salamina. E seu sucesso.