Antes de analisar o livro Kitchen propriamente, gostaria de ensaiar alguns pressupostos pelos quais procurarei caminhar quando da minha leitura. Acho necessário tal preâmbulo para fixar algumas questões que me guiarão na interpretação do livro, e, como não conheço seu “grau” de veracidade, exponho-os de antemão para tentar situar o leitor diante de minhas próprias dúvidas e minha opinião a respeito do livro.

Pois bem, sabendo que Banana Yoshimoto é aclamada no Japão e que Kitchen já vendeu horrores por lá, procurei entender o motivo de tanto frisson. Não porque o livro seja ruim ou não mereça tal reconhecimento, mas porque precisamente esse livro. A imagem que nos vem do Japão é de um país eminentemente urbano, onde as tecnologias, mais do que em qualquer lugar, fazem parte do cotidiano das pessoas. Não à toa que a cidade futurista de Blade runner tenha caracteres japoneses na sua constituição.

As imagens de Tóquio, principalmente as de cidades – que, aliás, são as predominantes -, criam a impressão, mais do que em relação a outros lugares, de que a solidão urbana, o anonimato da multidão e aquela desumanização que parece acompanhar os ambientes urbanos está impregnada naquele cenário de tantos contrastes. As casas pequeninas, as ilhas de repartição nos gigantescos escritórios, as instalações ultra-modernas e frias e outros exemplos me servem de base para que se enxergue o Japão com essas feições, onde os humanos vivem experiências no mínimo peculiares nessa enxurrada de informações e tecnologias.

Pode ser que eu esteja exagerando e que essa minha impressão não seja mais do que um senso comum que resiste apesar de ser questionado de tempos em tempos. Apesar da dúvida quanto ao nível de acerto dessa minha asserção, foi nesse espaço e nessa sociabilidade e dinâmica de vida que procurei situar Kitchen.

O livro é formado por três histórias: “Kitchen”, “Kitchen 2″ (também intitulado “Lua Cheia”) e “Moonlight Shadow”. As duas primeiras histórias são sequenciais, enquanto que a última se aproxima das primeiras por meio de afinidades temáticas simplesmente.

A primeira e segunda histórias nos são contadas por Mikage Sakurai, uma jovem que, tendo perdido a família, passa a habitar com os Tanabe, uma família no mínimo peculiar, formada por Yuichi, um jovem, e Eriko, o adulto responsável da casa. “Kitchen” e “Kitchen 2” lidam com o tema da perda, pois ambos os protagonistas, Mikage e Yuichi, passam por um processo de perda de entes queridos, de modo que, apesar dessas fatalidades, são obrigados a reconstruir suas vidas e estabelecer coerências nelas, mesmo com esses sustentáculos faltando. O mérito de Banana Yoshimoto nessas histórias (e na outra) é justamente a fluidez de sua narrativa e o caráter pontual que exprime com metáforas eloquentes e adjetivos bem colocados a sentimentos, sensações e comportamentos dos personagens.

A terceira história, “Moonlight shadow”, também lida com a perda, dessa vez através da relação entre a narradora e seu par romântico, Hitoshi. A dor da perda e o pesar da existência permeada pela ausência são contrabalançados pelas amizades contraídas pela narradora e pela presença espiritual de seu amado. Embora Yoshimoto não se valha de contatos metafísicos para trabalhar esse amor duradouro, a memória de Hitoshi integra a vida da narradora de formas muito sensíveis, fazendo-a inclusive mais capaz de lidar com os problemas que passa a enfrentar diante da solidão em que é deixada.

A expressividade dessas histórias repousa justamente nos pequenos elementos, nos detalhes mais ínfimos, porém mais plenos de significado humano. Uma flor de cerejeira, a corrente de um córrego, o balouçar das árvores, o barulho do frigir dos ovos, do chiar da chaleira, o aconchego de um cantinho doméstico, o barulho dos saltos de alguém se aproximando, uma troca de olhares na estação de metrô, tudo são fragmentos de experiências reais que integram a própria vida e consciência dos personagens de Yoshimoto. A humanidade que parece subsumida no emaranhado hipertrofiado de tecnologias, arranha-céus ameaçadores e uma massificação banalizante, sobrevive precisamente nesses pequenos fragmentos.

Embora pareçam eles limitados – e talvez até superestimados -, são eles a própria expressão da simplicidade compreensível e palpável, pois possuem uma característica humana essencial, visível somente àqueles que por um momento se subtraem das rotinas desumanizadoras para os contemplar. Quando Mikage, uma apaixonada pelo ambiente das cozinhas, fala sobre a sensação que lhe causa encontrar bons tomates, pode nos parecer estranho sua empolgação, mas está longe de ser, por isso, menos expressiva sua fala:

“Gostava mais dos tomates vermelhos e brilhantes que encontrava no supermercado do que da minha vida.” (p. 67)

São retratos do Japão que, se pararmos para notar, são recorrentes em várias outras manifestações culturais de lá, desde mangás e animes até as filosofias milenares, artes marciais, cinema e literatura, tão intimistas quanto intrigantes, tanto em relação a eles quanto acerca de nós mesmos.