Em determinado ponto da narrativa de Matadouro 5, clássico de Kurt Vonnegut lançado em 1969 e relançado no Brasil em 2005 pela L&PM Pocket, me peguei pensando na cena de abertura de Apocalipse Now. Sobreposições tomam conta da tela, helicópteros e ventiladores têm o mesmo fator amedrontador para o personagem principal interpretado por Martin Sheen, que vive numa viagem alucinógena – entre um choro e uma queda na realidade para saber onde e quando realmente está – antes de sua próxima missão. Billy Pilgrim é o protagonista do livro escrito por Yon Yonson, o livro dentro de Matadouro 5, sobrevivente do bombardeio de Dresden – que matou 135 mil pessoas, o dobro de mortes de Hiroshima – e vive em viagens no tempo: do período em que esteve na Segunda Guerra Mundial, passando por seu casamento e sua vida profissional pós-guerra, e sua vida como um animal dentro de um Zoológico em outro planeta.

Para que tamanhas sobreposições linguísticas sejam verificadas, Vonnegut deixa diversas pistas que fazem com que os tempos em que Billy viaja no tempo seja, na verdade, o mesmo tempo – ou como o personagem afirma ao ter aprendido com alienígenas que o tempo é o de menos e não devemos ligar muito para ele. Tais vestígios não são mero acaso, em determinados pontos da narrativa dentro da narrativa, sabemos que o autor Yonson é o cara que liga embriagado para Billy – personagem fictício e inspirado em algum sobrevivente do bombardeio de Dresden – sem querer dizer muita coisa, na verdade. Ainda há os livros de Kilgore Trout aparecendo tímidos ao longo da trama, mas são de extrema importância para Pilgrim.

A ironia impregnada nas passagens em que “coisas da vida” (expressão amplamente repetida durante todo o romance, literalmente) tomam conta de coincidências cretinas, onde, por uma fração de segundos, vários personagens podem se salvar ou morrer instantaneamente. Billy Pilgrim aprendeu com seus amigos tralfamadorianos que ninguém morre de verdade, apenas parece ter morrido e continua a fazer as mesmas coisas em um não-tempo em uma existência não-linear. Transporte-se para o momento que quiser e lá estará. Muitas vezes isso acontece com o personagem e nem sempre o momento é bom. Não há como mudar passado, presente ou futuro, afirma o narrador o que já sabia o velho-novo Pilgrim.

Matadouro 5 parece que falará sobre a guerra e será um relato impregnado de sátiras sobre como a estupidez humana é percebida em períodos de armas, isso está incluso em toda a narrativa, só que a guerra é de longe citada. Não importa o quão chegue perto de descrever uma batalha, Billy Pilgrim foge do momento de guerrilha e retorna a Segunda Guerra quando está, por exemplo, usando o banheiro ou entrando em um acampamento de refugiados. Não há um discurso antiguerra, a história de Billy Pilgrim percorre na tangente, na quarta dimensão, o que foi verdadeiramente a guerra – suas consequências, suas histórias e suas mortes: coisas da vida… humana.

Como um livro dentro de um livro o que nos é prometido em suas primeiras páginas, na voz de Yon Yonson – nome fictício criado pelo escritor para proteger a todos -, é uma narrativa sobre o que ocorreu nos bombardeios de Dresden, na Alemanha, e todos os causos paralelos entre os combatentes que o acompanhavam, porém isso não se cumpre. Yonson afirma que não há nada inteligente em se dizer sobre um massacre e que tudo está morto e silenciado após uma devastação. A guerra nada mais é do que um silenciador de conflitos entre bandeiras e estados. Billy Pilgrim, Bernard V. O’Hare, Yon Yonson, Bob Indômito e muitos outros são meros coadjuvantes, ninguém se lembrará de seus nomes, de suas posições no front se não estiverem com uma medalha alfinetada ao peito, a guerra sempre foi o personagem principal. Ou seja, Yonson afirma que seu livro do sobre Dresden é confuso, mas nunca fala que ele não é verdadeiro.

Matadouro 5 é uma galeria de personagens repugnantes e adoráveis, todos com suas devidas ignorâncias são um verdadeiro deleite dentro de uma história sobre guerra que não narra a guerra. Uma sátira ingênua e despretensiosa à primeira vista e ácida e verossímil ao final de sua narrativa fantasiosa e inventiva – um gracejo a tudo que se tornou banal. Coisas da vida.