Arrisco dizer que daqui a muitos anos, quando os fãs de ficção científica e fantasia estiverem pensando nos livros marcantes dos anos 2010, eles se lembrarão de Among Others. Em parte, claro, por ter ganhado o Nebula (algo como o Oscar de FC&F) e, quem sabe, por também ter levado o Hugo (assim como um MTV Awards), que ainda espera para ser anunciado hoje à noite. Mas acho que existem motivos mais profundos para acreditar que ele continuará na memória dos leitores. Among Others é um daqueles casos raros e deliciosos para os bibliófilos: um livro sobre livros. Ou melhor, sobre crescer entre livros.

A história é contada na forma de diário, escrito por Mor (ou Morganna), uma garota de 15 anos criada entre os vales do País de Gales (descritos com tanto carinho pela galesa Jo Walton que temos o impulso de correr ao Lonely Planet mais próximo). Essa infância idílica, no entanto, foi interrompida de maneira violenta, por um acidente em que Mor perdeu sua irmã gêmea, além de ter se ferido gravemente em uma das pernas, o que exige que ande sempre com o apoio de uma bengala. Não bastasse tudo isso para a vida de uma adolescente, o atrito crescente com a mãe a leva a fugir de casa para morar com o pai na Inglaterra, um homem que ela mal conhece, e que logo a coloca em um internato para garotas.

Pode parecer a preparação para um melodrama, mas a perspectiva de Mor sobre seus problemas é bastante madura. A tudo ela reage de maneira racional, sem se entregar à lamentação. E nisso seus grandes conselheiros são os livros. Mor lê o tempo todo, entre todos os estilos, mas principalmente ficção científica. Em seu diário há quase tanto espaço dedicado a seus problemas pessoais, como as intrigas do pensionato ou as dificuldades com os garotos, quanto às suas leituras do momento. Na verdade, as duas coisas se misturam: Mor imagina o que fariam seus personagens favoritos ou busca conselhos em Heinlein ou Zelazny. Como essas pessoas introspectivas de caráter bookish, ela retira não apenas conhecimento, mas energia dos livros. “Posso aguentar qualquer coisa, desde que haja livros”, ela anota.

Mas existe ainda um outro elemento que faz com que Mor se sinta uma pessoa especial (e afinal este é também um livro de fantasia): magia. Mas não se trata aqui de varinhas mágicas ou pirotécnicas bolas de fogo. A magia de Among Others tem uma forma peculiar, que se dissipa e se mistura na própria realidade. Poderia, como ilustração, recapitular assim a história: Mor é uma garota de 15 anos, criada entre as fadas do País do Gales, criaturas estranhas, quase incompreensíveis, que raramente se comunicam com humanos e ainda assim apenas por diálogos entrecortados. Ela e sua irmã gêmea, após realizarem um ritual para impedir que uma bruxa poderosa – sua mãe – dominasse o mundo, são atacadas por ilusões e, confusas, acabam se envolvendo em um acidente. Mor foge então para viver com o pai, e tenta criar barreiras para que sua mãe não possa mais alcançá-la.

Essas duas versões, a normal e a mágica, coexistem até o ponto em que se torna difícil saber o que é ou não real. A magia como imaginada por Walton quase sempre não gera efeitos óbvios e evidentes, eles se infundem no próprio mecanismo nas coisas. Para aproveitar um termo em voga, seria como uma “fadacidência”. Por exemplo, um ritual feito para impedir que uma indústria continue poluindo os vales galeses pode se refletir em uma decisão da matriz de fechar essa planta pouco lucrativa, com a consequente demissão de milhares de funcionários. Será que o fechamento não teria ocorrido mesmo sem o feitiço? Como o ritual pode ter sido capaz de influenciar relatórios de gestão e produtividade e as decisões e as palavras de tantas pessoas? É certo tomar decisões que prejudicam a vida de tantos? Todas essas questões ocupam bastante o pensamento de Mor e a levam a ser cada vez mais cautelosa. A magia não é apenas dissimulada, mas imprevisível, desafiando noções comuns como a de livre-arbítrio.

Embora exista esse lado mágico no livro, e até certa tensão quanto ao desfecho, seria enganador buscar aqui uma história de aventuras. O próprio formato da narrativa como um diário não favorece algo nesse sentido, uma vez que as anotações de Mor são feitas sempre fora do calor do momento. E do modo como funciona a magia, seria até mesmo perfeitamente possível entender toda a história de fadas e rituais mágicos como uma fantasia da mente de Mor (o que seria, claro, a interpretação mais sem graça de todas). Faço essa observação apenas como um alerta aos possíveis leitores, porque obviamente isso não constitui um defeito do livro, é apenas uma opção de estilo, que em nada diminui a obra de Walton. Olhando para sua obra do lado construtivo, acredito que ela tenha conseguido criar uma excelente fusão (ok, talvez só um pouquinho arrastada às vezes) de história de amadurecimento, elementos fantásticos e homenagem à história da ficção científica, à altura dos livros que ela mesma cita com tanta admiração.

Várias são as obras mencionadas ao longo da história, entre romances e contos, mas acho possível identificar duas características entre os favoritos de Mor (e estou assumindo aqui, de Walton). A primeira, que o leitor se apegue à história, que estabeleça uma empatia com os personagens, daquele jeito que o leve a imaginar sempre, como faz Mor, o que diriam ou fariam em certas situações. A segunda coisa, que sejam histórias que despertem especulações interessantes, que nos permitam sempre retomá-las com admiração e assombro. E se realmente fosse possível viajar no tempo? E se realmente fosse possível viajar mais rápido que a luz? E se realmente fosse possível fazer magia, mas ela modificasse a realidade de maneira imprevisível? Acredito que essas duas características Walton conseguiu gravar em seu próprio trabalho, e é isso que o habilita para também se destacar na linha do tempo da ficção científica e da fantasia. Poderemos nos lembrar de Among Others tanto pela personalidade e pelas atitudes de Mor, por seu amor pelos livros e seu estoicismo, quanto pelas fabulosas circunstâncias de sua vida.

Grande parte da identificação com a personagem, no entanto, depende dessa relação com os clássicos da FC (em um gênero de história tão recente, acho que as obras dos anos 70 já podem ser chamados de clássicos). Sem entender as referências a Shevek ou a Lazarus Long, boa parte da intenção do livro acabará se perdendo. Quando a história fala de uma discussão sobre os méritos de Heinlein, por exemplo, e os personagens se dividem, é preciso que o leitor também tome partido, faz parte da construção dessa atmosfera de um livro sobre livros. Por isso também imagino que Among Others dificilmente chegará a ser publicado no Brasil, não faria sentido, entre tantas lacunas no que já foi publicado por aqui. É uma pena que o gênero não faça ainda tanto sucesso no país, mas enquanto isso, a todos os fãs do gênero que tiverem acesso ao inglês, uma leitura altamente recomendada.