Conhecia Philip Roth de Nêmesis, um livro do qual me lembro de ter gostado. Depois de Patrimônio, fiquei ainda mais afim de ler mais livros dele, tanto que O complexo de Portnoy já foi resgatado da masmorra dos armários, teve seu pó espanado e está ali prontinho para ser palmilhado. Patrimônio lida com temas espinhosos de uma forma admirável e no mínimo peculiar. Tentarei pôr em relevo precisamente esse tratamento que Roth dá às questões que aborda.

Conforme nos informa o subtítulo do livro, Patrimônio é Uma história real. Trata-se da experiência de Roth com relação a seu pai, que, tendo descoberto um tumor no cérebro, é obrigado a lidar com os reveses e as implicações de sua condição. As rotinas de visita a consultórios, as angustiantes esperas de diagnóstico, o delicado tratamento, as limitações impostas pela velhice e todo o espectro de questões filosóficas imbricadas nesse processo.

O livro foi escrito como um relato. Uma narrativa que se divide em capítulos e que se baseia em eventos-chave que elucidam uma questão central, ou que, se não elucidam, a ressaltam diante de outras em suas implicações existenciais e filosóficas. Não se deixem enganar, Roth não está aqui a meramente alimentar sua literatura da delicada situação de seu pai, mas, tendo ensejado a doença tais questionamentos no íntimo do autor, relatá-los é tanto pô-los diante dos leitores quanto lidar com eles.

Patrimônio é um livro que orbita ao redor de questões existenciais. A velhice do pai é expressão das próprias limitações humanas, a consciência dele em relação ao que pode e não pode ser feito é pungente e diz respeito às implicações do nosso “ser” e “deixar de ser” (i.e. viver e morrer), a vulnerabilidade do ser enquanto ligado a outrem, o contraste entre nossas faculdades intelectuais e nossa contraparte física e assim por diante. O tumor do pai de Roth fez com que todas essas dúvidas e angústias viessem à tona e pusessem tanto o autor quanto seu pai diante das verdades nuas e cruas da existência humana, suas potencialidades e sua finitude.

Uma das características que mais chama a atenção com relação ao relato de Roth é precisamente sua serenidade ao relatá-lo. Longe de envergonhar-se de suas emoções ou de sua vulnerabilidade diante da morte e da doença, Roth relata suas angústias e choros com relação ao processo todo. Mas ele parece manter-se, tanto quanto possível, nos eixos de seu comportamento, levando a cabo uma busca obstinada em manter-se sereno durante o processo apesar de sua dureza.

Através dessa capacidade preservada à duras penas, Roth penetra em tais rincões com uma constância absolutamente louvável, evitando que sua mente se turve o suficiente para impedi-lo de nos por em contato com a implacável imperiosidade do tempo.

Patrimônio é, afinal, um livro sobre pais e filhos. Mas é, antes disso, um livro sobre nossa fragilidade, tanto em vida quanto próximos da morte. A serenidade de Roth, no entanto, nos mostra como podemos lidar com ela de forma a evitarmos o desespero e sem abrir mão da razão. Quero eu ter tal capacidade quando for posto diante de tais desafios.

Com uma constatação de rara melancolia, Roth, que ficou junto ao pai durante todo o processo, diz qual é o patrimônio que lhe restou: após uma disfunção proveniente da velhice e da condição enferma, o pai de Roth enfrentou as duras implicações de uma inconstância intestinal, ao passo que Roth, tendo limpado o banheiro onde tal inconstância tomou lugar, relata:

“E, agora que a tarefa fora concluída, não podia estar mais clara para mim a razão pela qual aquilo era certo e tinha de ser. Aquilo era o patrimônio. Não porque limpá-lo simbolizasse alguma outra coisa, mas porque não simbolizava nada, porque era nada mais, nada menos do que a realidade existencial nua e crua. Ali estava o meu patrimônio: não o dinheiro, não os teflins, não a tigela de barbear, mas a merda.” (p. 141)