Mesmo não tendo lido a maior parte da obra do escritor português José Saramago, ouso dizer que uma das melhores formas de adentrar no seu universo de temas, questões, abordagens e estilo é A viagem do elefante. O romance (ou conto, como sugere o subtítulo) de 2008 apresenta diversas características que, a meu ver, podem servir para formar uma bela porta de entrada para quem quiser conhecer a riqueza que Saramago tem a oferecer.

Seja pela sua extensão menor, seja pelo estilo narrativo já consolidado com toda a sua exuberância, seja pelas questões recorrentes de sua obra se insinuando a todo o momento, A viagem do elefante é deveras um livro delicioso de se ler. Essa obra ainda tem a vantagem de ter um enredo mais “leve”, digamos assim, que faz as vezes de introdução a uma temática e uma abordagem que assumem maior sisudez ou mordacidade de acordo com as intenções de discussão do autor.

A história tem seu pontapé inicial quando Dom João III, então rei de Portugal e Algarves, e sua mulher, Catarina, da Áustria, resolvem presentear o Arquiduque Maximiliano, irmão da rainha e também da Áustria, com um elefante. Salomão, o tal elefante, possui como cornaca (uma espécie de condutor e treinador) o indiano Subhro, que devido à sua habilidade no trato paquidérmico deverá acompanhar, juntamente com um destacamento militar português, o elefante até, primeiramente, Valladolid, na Espanha; e, posteriormente, à Viena, na Áustria.

O romance trata exatamente dessa pitoresca jornada. Assim como em Memorial do convento, Saramago trata dos nababescos e rocambolescos caprichos e decisões da Coroa e da corte portuguesas. A vida sob a égide monárquica, com todos os seus absurdos e expedientes burocrático-ritualísticos ganham uma ferina leitura a partir da ótica saramaguiana. Além disso, essa leitura mordaz a respeito da futilidade dos mandos e desmandos reais revela outra muito característica leitura do autor: sua perspectiva social aguçada em relação às desigualdades.

Com tal leitura, Saramago nos brinda com uma história que, se em termos, digamos assim, “oficiais” deveriam engrandecer a magnificência real, acabam, no entanto, pela natureza de sua realização e a logística nela envolvida, engrandecendo precisamente a figura e as habilidades de Subhro. Assim como a simpatia de Saramago, em Memorial do convento, está com Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas (bem como com os construtores do Convento de Mafra), em A viagem do elefante está com o trabalhador que ocupa uma posição inferior na escala social.

Subhro é quem tem toda a jornada nas mãos: seu ritmo, a vontade ou a não-vontade de Salomão, a possibilidade desse colaborar ou empacar. Ainda que esteja obrigado por toda sorte de compromissos com sua majestade, Subhro, possuindo o know-how de seu vitalício ofício, goza de uma autonomia a um tempo engraçada e rara. Mesmo quando é lembrado de suas obrigações, ele com elas lida de uma forma muito bordejante, sabendo contorná-las com esperteza e habilidade.

Mesmo a questão religiosa, tão recorrente na obra do autor português, aparece em A viagem do elefante na forma de um milagre forjado no qual a genuflexão de Salomão desempenha um papel primordial, a qual, como era de se esperar, depende da habilidade de Subhro em conduzi-lo. O planejamento e a execução do “milagre” com o elefante é um dos pontos altos da história, e possui caráter emblemático nesse sentido, pois junta os elementos mais típicos da obra do literato português.

No mais, com aquela forma toda especial de nos pôr a par de tudo o que concerne ao desenrolar da trama, A viagem do elefante é uma obra a qual talvez possa-se chamar “despretensiosa”. Ou pelo menos é assim que ela parece diante dos demais livros do autor. Apesar disso, não nos deixemos enganar, nas fissuras e nas sugestões veladas (mais insinuações do que amplas abordagens) desse livro, está desenhado um panorama todo especial sobre a obra de Saramago. Podemos entrevê-la ao mesmo tempo em que seguimos a jornada de Salomão, ou seja, devagar, degustando e aproveitando cada vírgula e cada aposto.