No final da minha resenha de A memória de nossas memórias relatei minha vontade de escrever mais acerca do livro, uma vez que a leitura se mostrou a mim tão prolífica. Por conta disso é que esse texto follow up está aqui: tem mais algumas questões que acho que valem a pena serem tratadas e que, quiçá, virão a fomentar ou desencadear um debate sobre o livro.

Justificativas introdutórias a parte, resolvi adotar aqui uma estrutura mais direta, em forma de tópicos e pequenos textos acerca de cada um deles. Por conta de seus intentos de dissecação do romance, é extremamente recomendável que se leia o livro antes, pois há aqui revelações acerca do enredo e dos mecanismos de construção literária que podem estragar a leitura, uma vez que o leitor tem participação direta na construção desse painel mais amplo, ainda mais nesse livro. Relevem o estranhamento estético e perdoem-me o mau jeito formal, tudo bem?

– os personagens: como se tratam de histórias que se desenrolam – em alguma medida – de forma independente, cada uma delas precisa se sustentar em pé por si própria. As outras têm de ser em relação a ela um complemento e não sua condição de coerência. Assim, ao conhecermos, por exemplo, Lotte Berg, sua trajetória, independente das outras, nos seduz e suas peculiaridades surgem para nós como uma trama sólida e habilmente construída. O mesmo com Daniel Vardsky, que aparece através das outras tramas mas que possui uma história bastante intrigante: aventurou-se pelo mundo, mas acabou sendo morto pelo governo ditatorial chileno encabeçado por Augusto Pinochet. Os personagens possuem uma vivacidade e uma verossimilhança dignas de nota, cada trama é autônoma e possui seu charme. Ninguém vai destacar os trechos para lê-los separadamente, mas é um mérito fazê-los sustentar-se como eles o fazem em A memória de nossas memórias;

– o rastreamento histórico: não sei dizer ao certo se qualquer um dos personagens é inspirado direta e exclusivamente de algum sujeito que de fato existiu. Mas isso nem é o mais importante, o diálogo entre o factual e o ficcional é mais complexo do que pode querer abarcar um texto dessa envergadura. O que interessa aqui é pôr em relevo – e em destaque – o trabalho de pesquisa que certamente circundou a feitura de A memória de nossas memórias. A constituição de uma trajetória dentro da complexa história do Holocausto nazista na Europa é uma tarefa ousada e desafiadora. Da mesma forma, as referências à literatura latino-americana, a eventos da história polonesa, à vida acadêmica européia e ao espinhoso cotidiano de Israel não são fruto de menor delicadeza.

– o senso histórico, social e de memória – como a autora relatou nesse vídeo, enfeixar a realidade vivenciada pelas pessoas e pôr em relevo os infinitos – e não raro imperceptíveis – fios que as unem é uma das suas tarefas enquanto escritora. Sua concepção do “ofício literário”, nesse sentido, é bastante interessante. Se comparamos, por exemplo, a maneira como a literatura aparece para Nadia e para Lotte, vemos que para a primeira ela é uma maneira – fracassada – de lidar com suas próprias frustrações; enquanto para a segunda é uma maneira de lidar com seus fantasmas e manter a sanidade, mesmo que a custa de uma profunda austeridade existencial. Um dos pontos recorrentes entre A memória de nossas memórias e A história do amor é esse emaranhado que une a todos, ao invés de nos individualizar. A literatura, em ambas as obras, serve também como um elemento que ajuda a descobrir essas redes, assim como a narrativa se constitui a partir da memória e manifesta-se na história, tanto passado quanto presente e, espera-se, futura. Quem sabe essa seja uma das tônicas mais pujantes da literatura de Krauss, como sugere a referência do título:

Reis 2: E queimou a casa do Senhor e a casa do rei, como também todas as casas de Jerusalém, e todas as casas dos grandes queimou.
Dois mil anos se passaram, meu pai me contava, e agora toda alma judaica é constituída em torno da casa que queimou nesse incêndio, tão vasto que só conseguimos, cada um de nós, lembrar de um minúsculo fragmento: um desenho na parede, um nó da madeira de uma porta, uma lembrança de como a luz batia no chão. Mas se todas as lembranças judaicas se juntarem, se todos os fragmentos sagrados se juntarem de novo numa coisa só, a Casa se erguerá outra vez, disse Weisz, ou melhor, uma lembrança da casa, tão perfeita que seria, na essência, o próprio original. Talvez seja isso que querem dizer quando falam do Messias: uma montagem perfeita das infinitas partes da memória de nossas memórias. Mas isso não será para nós, para preservar nosso fragmento, num estado de perpétuo lamento e saudade de um lugar que só sabemos que existiu porque nos lembramos de uma fechadura, de um tijolo, do jeito que a soleira estava gasta debaixo da porta aberta.” (p. 326)

– George Weisz: é preciso singularizar aqui o trabalho desse antiquário que caça móveis e objetos para seus contratantes, pois creio que ele expressa a própria concepção de literatura de Nicole Krauss. Como ele explica a respeito de sua profissão: “É verdade que não posso trazer os mortos de volta à vida. Mas posso trazer de volta a poltrona onde sentavam, a cama onde dormiam”. (p. 321) Weisz encontra – ou fabrica – os móveis para ajudar as pessoas a lidarem com as memórias que os ligam ao passado tanto quanto encarnam seu presente. Não se trata de um mercenário atrás do dinheiro, pura e simples; nem de um vigarista atrás de ingênua boa fé, mas sim de um trabalho, apesar dos pesares, muito nobre e ao mesmo tempo pesaroso, como transparece na sua descrição acerca dos frutos de seu trabalho:

“Para cada um vem um deslumbramento (…) quando finalmente encontro o objeto com que sonharam durante a metade da vida, no qual investiram todo o peso de sua saudade. É como um choque para eles. Desdobraram suas memórias em torno de um vazio, e de repente a coisa que faltava apareceu. Mal podem acreditar, como se eu revelasse o ouro e a prata que os romanos saquearam quando destruíram o Templo dois mil anos atrás.” (p. 321)

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De fato, A memória de nossas memórias é um livro que abre inúmeros caminhos para discussões e para toda a sorte de questionamento a respeito de nós mesmos e a respeito de um aspecto de nossa existência que tem sofrido fortes abalos nos últimos tempos: nossa historicidade, i.e. nossa capacidade de conjugar o passado como constituinte do presente e lastro para um possível futuro. As memórias que atormentam a uns servem de consolo a outros e inspiram, ainda, a outros, tudo isso na complexa dialética que nos envolve a todos.