À primeira vista, o filme Paralelo 10 aparenta propor apenas um documentário antropológico clássico. Acompanhando o sertanista José Carlos Meirelles em uma expedição a uma pequena base Xinane da FUNAI, próxima ao Paralelo 10º Sul, oeste do Acre, somos confrontados com as questões e paradoxos presentes nas tentativas de mediar os conflitos indígenas da região.

Todo o início do filme se ocupa de um relato da longa e difícil viagem de acesso a esta área. Abdicando da tensão narrativa, a descrição extensiva de uma série de sucessivos atrasos não propõe em nenhum momento o impedimento do objetivo almejado. Não é mais que a representação de uma espera. O filme já merece, aqui, atenção. Ao dedicar diversos dos preciosos minutos do filme a um acompanhamento quase cronológico de eventos que poderiam muito bem ter sido suprimidos na montagem, estamos também nos confrontando com a dificuldade do acesso ao “outro”: o encontro, matéria-prima do documentário, sempre será precedido pela ansiedade, a expectativa e o medo.

E o encontro, quando finalmente ocorre, se dá através de uma decepção – um anti-orgasmo. O “outro” real em nada se parece com aquele “outro” projetado pela expectativa do encontro. Pelo contrário, assemelha-se demasiadamente com nós mesmos: ao reclamar que a falta de chuva está atrasando a viagem, o sertanista pede ao amigo indígena que faça chover, numa referência que aponta claramente a uma visão idealizada do índio. Como resposta imediata, ambos riem da brincadeira. O tão esperado “outro” se desmistifica instantaneamente: é um ser humano tão impotente frente à natureza quanto nós. E o resultado é um desencantamento frente ao objeto que se filma. Uma profanação da representação pela realidade.

A decepção do outro em Paralelo 10 é a decepção do espelho. A narrativa deste filme é composta por uma contínua sucessão de rupturas e desmistificações através das quais, por negação, se toma consciência da situação posta. Primeiro o indígena é tornado ordinário, como todos nós. Depois, rompe-se o heróico imaginário que ronda os sertanistas, explicitando suas fraquezas, incertezas e erros. E gradualmente de todas as figuras que constroem o documentário: a FUNAI pela incapacidade de oferecer soluções políticas adequadas; os índios isolados, sempre presentes, prenunciam um fracasso em potencial por comparação as tentativas passadas em lidar com outros grupos semelhantes etc. Quando Da-Rin realiza estes sucessivos desencantamentos, eles só servem para impedir a existência de um discurso predominante confiável: no processo documental do encontro, não há ponto de vista adequado.

Cabe, neste ponto, rememorar outra pérola do documentário nacional. Em Serras da desordem, de Andrea Tonacci, o indígena também é uma ferramenta de ruptura. Reproduzindo o caminho de Carapirú e seu acidental mergulho no dito “Brasil civilizado”, Tonacci realiza uma engenhosa inversão de perspectiva dando ao indígena o direito do uso de voz. A “civilização” não é quem julga, mas sim aquela que é julgada pelo índio que, depois de incorporado, a vê, a conhece e a rejeita. A opção pela perspectiva de Carapirú, Serras da desordem aponta a necessidade de comunhão do homem com a natureza, pois privilegia a voz do personagem que igualmente defende estes valores. A eleição de Meirelles o protagonista do filme de Da-Rin é igualmente engenhosa pelo fato de que a construção da narrativa só nos leva à incerteza do discurso.

Quando Meirelles reúne os indígenas para ver as mais novas fotos dos “brabos”, se manifesta o aspecto mais precioso da narrativa de Paralelo 10. Os indígenas Madijá e Ashaninka, escassos descendentes dos sobreviventes dos massacres decorrentes do processo de “civilização” de suas etnias por sertanistas do passado, observam os isolados “não civilizados” como espectadores de um espetáculo cinematográfico. O que se dá neste ponto é uma poderosa inversão de papéis, no qual os indígenas, ao invés de confrontarem a “civilização” por sua negação, repetem em seu discurso os mesmos erros que os antigos “discursos civilizatórios” impuseram a seus antepassados. Eles clamam por um “amansamento” dos isolados, decisão cujas conseqüências seriam, provavelmente, tão destrutiva como quando nós, “brancos” ((Terminologia usada pelos sertanistas e índios no próprio filme.)), tomamos decisão semelhante: a dizimação quase completa destas etnias.

Da-Rin nos formula uma poderosa narrativa que vai além do procedimento do “filme dentro do filme”, usado com maestria em documentários canônicos como Crônicas de um Verão e Cabra marcado para morrer. O que se passa aqui é outra coisa, pois ocorre uma espécie de curto-circuito entre realidade e representação através da ponte da memória projetada: somos induzidos a perceber os Madijá e Ashaninka como eco de nosso passado imaginado no exato momento em que compreendemos que eles, igualmente, imaginam “os isolados” como uma projeção de um passado imaginado de si mesmos. Somos projetados nos indígenas pela incapacidade de lidar com o outro desconhecido.

Porém, mais uma vez a ilusão se quebra quando Meirelles nos lembra que não se trata de uma memória, mas que somos todos o presente de um problema que não se solucionou e, portanto, nossa projeção não é real.. As soluções apresentadas pelo “progresso” e pela “civilização” não nos levaram senão à impotência frente aos fatos. “Não é porque o paciente vai morrer daqui a vinte anos que nós vamos matá-lo agora” diz o sertanista referindo-se aos “isolados”. Mas o argumento serviria também para os outros níveis da narrativa: o desastre – anti-milagre dos tempos modernos –obriga-nos a retomar a fragilidade da vida real. De que nos adiantou domesticar-nos por este clamado “processo de civilização” se ele não nos permite um acesso adequado ao outro? Somos, enquanto seres do progresso, exatamente iguais ao índio incapaz de realizar a “dança da chuva”.

É aí, portanto, que reside toda a potência de Paralelo 10 enquanto proposta documental. Ao introduzir diversos mecanismos reflexivos em um filme antropológico, Da-Rin pôde gerar uma forte tensão ética entre forma e narrativa do documentário, da qual decorre uma experiência documental única. Neste sentido, cabe-nos mais uma anedota: durante o período de pré-produção de minha primeira experiência em documentário, tive o privilégio de participar de um debate com João Moreira Salles. Ao fim da palestra, me aproximei do documentarista e pedi um conselho no sentido de que eu pudesse me preparar para o projeto e a sua resposta foi enfática: aconselhou-me a tentar e possivelmente errar, sem medo de que isso ocorra, pois sempre fracassaremos de algum modo ao tentar acessar o outro. “Eu mesmo fracassei, como você viu”, disse. Estava se referindo à exibição de um filme seu que ocorrera na ocasião. Este filme era Santiago.