William Faulkner costuma ser mais lembrado por seus romances como O som e a fúria, e por utilizar artíficios técnicos que assustam os leitores mais incautos: seus narradores são capazes de dar vários saltos no tempo em uma mesma página ou entrar em longos fluxos de consciência enquanto ignoram os acontecimentos a sua volta. Mas ele escreveu também dezenas de contos que, embora menos complexos formalmente, permitem que enxerguemos muito mais claramente um outro lado da sua produção – e muito mais fundamental, na minha opinião – que é sua preocupação com as dimensões da vida humana. Seus personagens têm origens comuns, são homens e mulheres do Sul americano, da virada para o século XX, mas a partir deles Faulkner consegue criar exemplos ora nobres, ora trágicos, mas sempre complexos, dos nossos destinos.

Uma rosa para Emily foi publicado em 1930, quando o escritor estava em um de seus melhores momentos – havia publicado O som e a fúria no ano anterior e acabara de escrever, em apenas algumas semanas, Enquanto agonizo – e definitivamente merece uma indicação para o hall dos contos essenciais da literatura. Logo em seu primeiro parágrafo, Faulkner consegue apresentar diversos aspectos da história, de maneira ao mesmo tempo concisa, instigante, bem-humorada e original, a começar pelo fato de que a personagem principal, Miss Emily Grierson, está morta.

“Quando Miss Emily Grierson morreu, nossa cidade inteira compareceu ao seu funeral: os homens por uma espécie de afeição respeitosa por um monumento que tombara, as mulheres mais pela curiosidade de ver o interior de sua casa, que ninguém, salvo um velho criado – combinação de jardineiro e cozinheiro – havia visto nos últimos dez anos.”

Não reparem as leitoras no tratamento dado às mulheres: o narrador, embora se esconda por trás de um “nós”, viremos a descobrir mais tarde, pertence possivelmente a um grupo de homens mais jovens que dirige a cidade, com os preconceitos característicos da época. A curiosidade quanto à privacidade de Miss Grierson, podemos supor, se divide por toda a comunidade.

Embora sejam dadas algumas pistas que ajudem a demarcar a identidade do narrador, em toda a história permanece o uso do “nós” na narração, como em “nós dissemos”, “nós acreditamos” ou “nós vimos”. Esse recurso, pelo qual o conto é mais frequentemente lembrado, acaba cumprindo mais de uma função. Em primeiro lugar, ele aproxima o leitor, atrai a sua cumplicidade. Ao assumir a mesma curiosidade que movia aquela comunidade, nós (os leitores) estamos nos juntando a eles (os habitantes da cidade). Ao mesmo tempo, ressalta-se o poder da opinião pública, a contínua vigília sobre a vida privada das pessoas, especialmente nas cidades pequenas, algo de marcada influência no destino de Miss Grierson.

Outro aspecto que permeia todo o texto, e ao qual já estamos ligados desde a primeira frase, é o mistério. O narrador nos sugere, de maneira sutil, que haveria fatos inexplicados a respeito da vida da personagem solitária, os quais teriam sido melhor compreendidos apenas depois de sua morte. De fato, a história vai nos sendo entregue aos poucos, de maneira desordenada, e só ao final, na última linha, é possível reconstruir boa parte dos acontecimentos (obviamente não poderia comentar mais sem estragar o prazer de ler essa história).

A estrutura temporal do conto, portanto, também é utilizada de forma medida para conduzir a atenção do leitor. A partir do funeral inicial a história vai dando pequenos saltos, explorando diversos estágios da vida de Miss Grierson, retomando as diversas circunstâncias que a levaram a se transformar nessa figura reclusa:

“Aqui e ali nós consegueríamos vê-la em uma das janelas do andar de baixo – havia evidentemente fechado o andar superior da casa – como o torso esculpido de um ídolo em um nicho, olhando ou não olhando para nós, nunca éramos capazes de dizer. Assim ela passou de geração em geração – estimada, inescapável, inalcançável, serena e perversa.”

Esses últimos adjetivos podem parecer contraditórios, mas outra coisa que Faulkner procura preservar no texto é a ambiguidade de sentimentos que Miss Grierson desperta na comunidade. Sua família havia sido respeitada e influente em outros tempos e, como o próprio narrador explica, se por um lado ela atraía a piedade de alguns, para outros era mais importante a satisfação de ver uma linhagem orgulhosa reduzida à penúria.

Nesse sentido de queda, a história de Miss Grierson se liga ainda a um tema geral da obra de Faulkner, que remete, em última instância, à decadência do Sul dos Estados Unidos como um todo, após a Guerra de Secessão. Como o escritor disse em Absalão, Absalão!: “Anos atrás nós do Sul fizemos de nossas mulheres ladies. Então veio a guerra e fizemos de nossas ladies fantasmas.”

No Brasil, segundo levantamento da tradutora Denise Bottman ((Disponível em seu blog, não gosto de plágio.)), o conto foi publicado pela última vez em 2002, com tradução de Octávio Marcondes, na antologia Os 100 melhores contos de crime e mistério da literatura universal.