Um aspecto da constituição das sociedades vinha sendo usado muito categoricamente como parâmetro para separá-las em dois tipos: a existência ou não de um Estado. No campo da Antropologia esse pressuposto foi aceito durante algum tempo, mas ficou difícil fazê-lo se sustentar em pé depois que Pierre Clastres (1934-1977) publicou os ensaios reunidos no livro A sociedade contra o Estado, relançado esse ano pela editora Cosac Naify na coleção Portátil.

Clastres é virulento em suas críticas: mostra como tomar a existência de um Estado cristalizado e instituído como critério para “medir” o grau de evolução de uma sociedade é uma postura etnocêntrica errônea e enganadora. O autor, no entanto, não somente afirma tal, mas busca nas assim chamadas “sociedades primitivas” da América do Sul o argumento empírico para sustentar suas investidas. A não existência de Estado na grande maioria dos povos indígenas sul-americanos (e mesmo os da América Central e do Norte) não os tornava “sociedades sem Estado”, como se lhes faltasse algo – e que, portanto, fossem incompletas e atrasadas -, mas sim, como defende Clastres, “sociedades contra o Estado”.

A mudança dessas palavras (“sem” para “contra”) altera profundamente a leitura e a concepção a respeito dessas sociedades e, em consequência, da nossa própria. Um dos caminhos que Clastres adota para pensar a política é a discussão da concepção de poder. A política é muito associada à ideia de poder, e esse, não raro, à ideia de comando-obediência, i.e., coerção. O que está no cerne da concepção hegemônica (i.e. a Ocidental) de Estado – e consequentemente de poder e de política – é a ideia de coerção, que não raro se transmuta em violência, tanto física quanto simbólica. Pode parecer uma associação rápida, mas ao longo de seus escritos Clastres mostra como não é, e como a gênese do Estado enfeixa muito mais acontecimentos e desdobramentos que podemos supor à primeira vista.

Diante dessas constatações, não se torna difícil perceber como a visão que separa as sociedades humanas em sociedades com ou sem Estado é profundamente etnocêntrica (1); e como a recusa das “sociedades primitivas” em relação ao Estado está longe de ser estapafúrdia ou sinônimo de atraso (2). Essas constatações ainda servem para nos colocar diante de todo um rearranjo das noções de política e poder, que precisam ser necessariamente repensadas diante de novas evidências e a partir de outras perspectivas, como a de Pierre Clastres, por exemplo.

A questão central de todos os ensaios reunidos nessa obra é a dinâmica política das sociedades indígenas, especificamente aquelas da Floresta Tropical, ou seja, aquelas que, diferentemente dos povos andinos, não possuem a instituição do Estado como algo que regesse a vida social. A riqueza de A sociedade contra o Estado, entretanto, não repousa somente no tratamento distinto da política (embora essa seja o ponto culminante), mas sim pela forma como Clastres usa das longas e vastas descrições antropológicas para desnudar os pilares de sustentação da política. Isso faz com que ela deixe de ser uma estrutura que paira sobre todos e passe a ser uma instituição cujas raízes estão fincadas na realidade social mais cotidiana, seja no trabalho, nos ritos, nos costumes, na divisão sexual, nas dinâmicas familiares e assim por diante.

Dissecar o “comportamento” político das sociedades indígenas e descobrir como é regido o estatuto social de convivência sem a presença reguladora do Estado, eis o objetivo mais complexo e instigante da obra. O antropólogo francês vai pouco a pouco desconstruindo toda a dinâmica de existência social dos indígenas e vendo, passo a passo, aspecto a aspecto, como essas sociedades se regulam e como está constituído o poder político nelas. Não possuir Estado, afinal, não faz delas sociedades “apolíticas”, mas sim distintamente políticas.

Desse intento é que surgem estudos sobre a tribo dos Guayaki, acerca da divisão das tarefas por sexo e todo o papel social que lhes é conferido (presente no ensaio O arco e o cesto); sobre os ritos de passagem à vida adulta através da marcação do corpo (no ensaio Da tortura nas sociedades primitivas); sobre as prerrogativas e as limitações dos chefes (Troca e poder: filosofia da chefia indígena); sobre os desdobramentos políticos da demografia (Elementos da demografia ameríndia); sobre o papel dos líderes “religiosos” nessas sociedades (Profetas na selva); sobre os significados da linguagem, da palavra em relação ao poder (O dever da palavra) e assim por diante, sendo que tudo se sintetiza no texto que dá título à coletânea, A sociedade contra o Estado.

A edição da Cosac Naify ainda traz uma entrevista do autor à publicação estudantil L’Anti-Mythes, em 1974, que ajuda a compreender melhor não só seus ensaios, mas sua visão de mundo em sentido mais amplo, suas posições epistemológicas, filosóficas e ideológicas. A edição conta ainda com um prefácio de Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman, que ajuda a situar Pierre Clastres dentro das dinâmicas de seu campo de estudos e dos movimentos políticos de seu tempo, historicizando, por conseguinte, seu pensamento e seus escritos no campo mais amplo das Ciências Humanas.

A sociedade contra o Estado é um dos trabalhos basilares para um ramo da Antropologia que foi profundamente marcado pelos textos e pela atuação de Clastres, a Antropologia Política. Os textos do autor são magistrais na abordagem e no tratamento dos temas a que se propõe, colocando questionamentos constantemente, não só para si mas também para seus pares, inundando a rigidez anterior com uma enchente de frescor, de novos problemas e novos caminhos a serem trilhados. De minha parte já o considero um clássico.

Ensaios presentes no livro (em parênteses o ano de publicação original):

1 – Copérnico e os selvagens (1969)
2 – Troca e poder: filosofia da chefia indígena (1962)
3 – Independência e exogamia (1963)
4 – Elementos da demografia ameríndia (1973)
5 – O arco e o cesto (1966)
6 – De que riem os índios? (1967)
7 – O dever da palavra (1973)
8 – Profetas na selva (1970)
9 – Do Um sem o Múltiplo (1972)
10 – Da tortura nas sociedades primitivas (1973)
11 – A sociedade contra o Estado