Segunda Guerra Mundial. Uma mulher caminha entre as ruínas de uma cidade, carregando uma mala cheia e uma criança. Balbucia, enlouquecida. Derruba a criança que, na verdade, é um cadáver. Aqui são minhas palavras, mas é uma a cena que W. G. Sebald cita em seu Guerra Aérea e Literatura. A cidade em questão é Hamburgo. A mulher, cidadã do Reich alemão.

O objetivo mais óbvio do ensaio que dá nome ao livro é justamente tocar esse assunto tão espinhoso quanto ignorado: os bombardeios a cidades alemãs pelos aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Uma guerra chamada de ‘aniquilação’ que destruiu hospitais, escolas, lojas, casas. Matou mais de 600 mil civis. E, apesar de tudo isso, os próprios alemães costumam ignorar o fato, evitando falar a respeito ou lembrá-lo.

Sebald – que nasceu em 1944 e não tem memórias diretas da guerra – usa a literatura como ferramenta para discorrer sobre esse esquecimento (aparentemente) voluntário. Assim como a memória, a literatura alemã parece, sintomaticamente, fugir à responsabilidade de enfrentar os incêndios de Hamburgo, Dresden e tantas outras cidades. É verdade que após proferir as conferências que resultaram no ensaio, Sebald recebeu uma enxurrada de cartas e até mesmo livros falando o contrário. Muitas pessoas tinham escrito suas próprias memórias daquele tempo. Algo, na verdade, esperado: uma destruição de tal magnitute não poderia passar sem registros literários. Mas se trata de literatura de gaveta – obras nunca publicadas, obras que não contribuíram para que a consciência alemã do pós-guerra se firmasse.

Sebald explica que se publicou muito pouco sobre esse tema. Nas poucas vezes em que aconteceu, escreveu-se com um viés algo místico ou demasiado estético – que funcionam como uma espécie de analgésico para memórias, fazendo com que o enfrentamento desse passado se torne menos doloroso.

E confronta isso com a crueza visível em textos técnicos, como relatórios de autópsias. A destruição vista nos romances não se compara ao horror explicitado por esses relatórios – que, no entanto, mantêm-se friamente distantes. Uma notável exceção apontada por Sebald é a obra de Gert Ledig, que em seu romance Vergeltung aborda o tema com a crueza do sobrevivente – e que recebeu certa atenção do establishment literário.

Existe, ainda, um segundo ensaio no livro, um estudo a respeito de Alfred Andersch. Ele foi um escritor ambicioso e nem um pouco modesto, que passou por um ‘exílio interno’ durante os anos do Reich. Sebald afirma, porém, que apesar disso a relação de Andersch com as políticas nacional-socialistas foi bastante ambígua e, por vezes, eticamente questionável. No ensaio, Sebald justifica sua posição com as tentativas de re-escritura do próprio passado (e de sua autoimagem) feitas por Andersch após a guerra.

Juntos, os dois ensaios investigam um dos problemas mais delicados do século XX, o enfrentamento dos totalitarismos por seus herdeiros. Tanto ao se perceber que os alemães também foram vítimas da guerra – independentemente de ter sido seu país que a começou – quanto ao apontar o modo como a consciência alemã (ou pelo menos o caso específico de Andersch) lidou com as decisões tomadas quando o Reich parecia intocável.