Hoje é o fechamento da nossa “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, onde cada conversa abordou dois contos por vez. Confira os posts anteriores:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

Granta: Antes da queda e O que você está fazendo aqui

Granta: Tólia e Apneia

Granta: Valdir Peres, Juanito e Poloskei e O jantar

Granta: Noites de alface e Mãe

Granta: Temporada e F para Welles

Granta: A febre do rato e Faíscas

Granta: Teresa e Você tem dado notícias?

Granta: Fragmento de um romance e Violeta

NATUREZA MORTA

Vinicius Jatobá

Vinicius Jatobá nasceu em 1980, no Rio de Janeiro. É mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e estudou roteiro e direção na New York Film Academy (NYFA). Como crítico literário, colabora com os suplementos “Sabático” (O Estado de S. Paulo), “Prosa & Verso” (O Globo) e na revista Carta Capital. Participou com contos na antologia Prosas Cariocas (Casa da Palavra) e no catálogo de cinema 68 Cinema Utopia Revolução (Caixa Cultural São Paulo). Publicou ficção, crônicas e jornalismo em sites e revistas como EntreLivros, NoMínimo, Rascunho e Terra Magazine, onde foi colunista de livros e de cinema. Escreveu e dirigiu diversos curtas, entre eles Alta Solidão (2010) e Vida entre os mamíferos (2011). Trabalha em seu primeiro romance, Pés Descalços, e finaliza a reunião de contos Apenas o vento, de onde “Natureza–Morta” foi retirado.

Dindii: Mr Piposo, tudo? Vamos falar do Vinicius Ja-tóba? Então, Vinicius Jatobá, um dos nomes mais surpreendentes da Granta, porque era um autor que, em teoria, não escrevia ficção.

A primeira coisa que pensei sobre o conto, já depois de terminar de lê-lo, é que ele é extremamente visual. Temos uma casa abandonada e tudo nela conta uma história e remete a um instante em que ela já foi habitada. É essa coisa de que cada objeto conta um pouco sobre a pessoa que o tem. O que você acha?

Felippe: Interessante, eu abordaria essa parte mais para o fim, mas realmente é uma coisa que chama atenção. Gosto da forma como Jatobá intercala os momentos da casa, desde seu nada até sua forma mais decrépita, como se quando o filho do casal fosse jovem a casa estivesse nos seus melhores anos e depois abandonada.

O objeto se tornar pessoa é a melhor expressão para entender a máquina de costura, o terno e a casa. A ironia impregnada entre o título e o que se passa é muito bom, afinal a natureza-morta de Vinicius Jatobá nada mais é que a natureza humana.

Voltando um pouco para o começo, senti muito que Vera lembrava muito Macabea, você teve a mesma impressão ou é coisa da minha cabeça?

Dindii: Não pensei nisso quando estava lendo, mas agora que você falou, lembra bastante sim. Essa coisa de já que sou, o jeito é ser. 

Vera é uma personagem que desperta compaixão. Sua ingenuidade e trabalho árduo para construir o seu sonho e fazer com que os outros membros da família a sigam. Ela me lembrou um pouco também o Fabiano, de Vidas Secas, pelo seu jeito totalmente envolvido com o ambiente, e porque de forma recorrente, assim como Fabiano, ela se autodeprecia: “Você é um bicho, Fabiano”.

Já sobre o título, natureza-morta, pensei de forma mais geral, relacionando diretamente com as pinturas e fotografias desse gênero. Nesse sentido, a casa, um objeto inanimado, é a personagem principal. E também, como você falou, a máquina de costura e o terno, por exemplo.

E o marido da Vera? O que você achou dele?

Felippe: O marido da Vera é o retrato do covarde na sociedade. Visualizei ele como um homem ambicioso que joga suas frustrações em cima de terceiros. Para ele a aparência é o que importa, apesar de ser um perdedor posa de bem vestido (e todos sabem que o terno está rasgando) e come várias mulheres (mas não consegue abandonar a esposa).

O que achei interessante, e dei uma de Tuca agora, é que o Jatobá disse em uma entrevista que “Natureza-Morta” era para ser um romance e desistiu. Reduziu e transformou em conto. Não sei se daria para criar um romance todo com o que nos é apresentado. Acho que os personagens são muito bem desenvolvidos e a história tem um fim. Creio que se tivesse se prolongado, talvez não tivesse o mesmo impacto.

Dindii: É, acho que tem o tamanho certo. Quer dizer, até dá pra prolongar, porque sempre dá. Poderíamos, por exemplo, acompanhar mais o crescimento do filho do casal, as brigas e como aquele sonho da casa foi, aos poucos, se deteriorando. Mas ai já é outra proposta e outra história, mesmo que não perdesse impacto. Acho que seria difícil manter a casa como “personagem principal” em um romance. A estrutura teria que ser outra (seria menos natureza-morta).

Aliás, falando nisso, essa coisa de recortar a narrativa com descrições da casa, la pro fim do conto, começou a me incomodar um pouco, mesmo sabendo que era a proposta. Querendo ou não, é algo que esfria a história. Você vê assim também?

Felippe: Eu acho que esse esfriar da história tem relação ao abandono, a casa não ser mais a mesma, tudo está envelhecido e nessa “natureza-morta” eles não estão eternizados. Estão convalescendo, como quando o pai tenta arrumar a geladeira de novo ou na descrição dos canos. Mas, sim, incomoda muito essa repetição. Questão de estilo? Sim. Levo em consideração que esse abandono, essa frieza, seja para incomodar mesmo o leitor. Assim espero. Criar um ansiedade para terminar ou ao menos chegar na sensação de fim.

Como um todo, na minha opinião, esse é o texto mais conciso da Granta. Não sei se porque o próprio Jatobá já tinha recortado e editado tantas vezes, mas com certeza teve um resultado surpreendente.

Dindii: Surpreendente, com certeza.

Principalmente o final, porque ao vermos a casa abandonada, nós não esperamos que mais nada possa acontecer com ela. Achamos que ela será o ponto para puxar a memória das coisas que aconteceram ali, mas até ela enfrenta um destino.

 

O RIO SUA

Tatiana Salem Levy

Tatiana Salem Levy é escritora, tradutora e doutora em estudos de literatura pela PUC-Rio. É autora do ensaio A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze (Civilização Brasileira, 2011) e dos romances A chave de casa (Record, 2007) — vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, categoria romance de estreia, e publicado também em Portugal, França, Espanha, Itália, Turquia e Romênia — e Dois rios (Record, 2011), que sairá em breve em Portugal e na Itália. Nasceu em Lisboa, em 1979, e vive no Rio de Janeiro.

Gigio: “O Rio sua” fala de uma moça que retorna ao Rio de Janeiro e redescobre sua paixão pela cidade. Por isso, talvez eu e você, um mineiro e um paulista, não estejamos na posição ideal para julgar essa tentativa da Levy de explorar qual é o grande feitiço que o Rio exerce sobre a sua gente. Das nossas posições relativas, o que podemos ver é que, inegavelmente, os cariocas têm uma relação especial com a cidade. Conheço muitas pessoas que saíram do Rio, para trabalhar, principalmente, mas continuaram sempre voltadas para a Guanabara, como que ouvindo um chamado constante. Com o tempo, a maioria acabou retornando. Sempre achei isso bem curioso e gostei das ideias do conto de que “o corpo entende” e o “corpo se sente em casa”. E você, o que achou?

Palazo: Eu gostei bastante do conto. As palavras trocadas pela linguagem expressa pelo corpo, a necessidade constante da troca de fluidos e todo o encanto da cidade. Faz jus ao carinho que tantos cariocas destilam sobre as belezas do Rio de Janeiro, uma declaração de amor pela cidade maravilhosa. Poético, também na construção, com pensamentos desconexos que se comunicam através das pausas do texto.

Senti um tom autobiográfico, assim como no conto de Julián Fuks, já que ela é portuguesa e mora no Rio de Janeiro. Um lado meio ligado ao poema de Gonçalves Dias, valorizando as belezas naturais, do povo e da umidade carioca. Como se dissesse “os corpos que aqui transpiram, não gotejam como lá”. Soa como um poema de amor ao Rio escrito em prosa por uma portuguesa que se apaixonou pela cidade maravilhosa.

A única coisa que me soa estranho é que o conto não passa disso: um ode ao Rio de Janeiro. Levy até tenta colocar certas pitadas melancólicas – talvez um toque europeu – como quando fala sobre a necessidade de ser constantemente feliz na cidade, mas o corpo cede e ela transpira a alegria do Rio. Até o final, por mais trágico que soe, parece um desfecho perfeito para uma declaração de amor. Não acha?

Gigio: Acho sim, gostei mesmo dessa imagem do final. Por mais estranho que possa parecer, ela é uma extensão natural para o resto do conto. Seria como se a adoração pelo Rio chegasse ao ponto em que seu povo aceitasse ser devorado pelo mar, para assim se unir eternamente à cidade.

E apesar desse ser o tema que domina o conto – a ode ao Rio – acho que há também uma linha narrativa interessante, com essa história de uma mulher que vai aos poucos sendo seduzida, que vai se entregando à traição, não com outro homem, mas com uma cidade. Talvez o problema seja que, ao contrário da grande maioria dos contos da Granta, essa é uma história feliz. O trágico e o melancólico ficam mesmo de lado. E como disse o Alejandro Zambra naquela entrevista para o Meia Palavra, é “difícil colocar em palavras a felicidade sem que ela soe como uma bobagem”.

Pra mim, o que realmente atrapalha o conto são os momentos em que ele se esforça por ser mais profundo do que realmente consegue transmitir. Há vários casos em que a Levy acerta a medida, com certeza, mas na minha opinião eles acabam sendo prejudicados no conjunto por outros menos inspirados. Por exemplo, em certo ponto ela escreve que, face a um temporal que se aproxima, nos lembramos “o quanto somos frágeis e passageiros”. Entendo o que ela quis passar, mas “frágeis e passageiros” é uma associação já esvaziada pelo uso corriqueiro.

Palazo: Então podemos dizer que o pecado da autora foi em tentar aprofundar-se usando clichês?

Gigio: Pô, assim você me aperta… rs Não, neste caso específico que eu citei dá para dizer que ela usou um clichê, mas não acho que dê para generalizar para o conto inteiro. Mas considero sim que ela poderia ter ido mais a fundo, em geral. Para usar mais um exemplo, ela escreve:

“Meus órgãos estavam ficando igualmente áridos e secos, atrofiados. Aos poucos, o ar úmido expande-os de novo. Ando de bicicleta pelo aterro do Flamengo e experimento a curiosa sensação de ser quase feliz.”

Me parece um trecho que acaba não dizendo muito ao leitor, a não ser que ele mesmo já tenha andado de bicicleta pela orla e saiba que sensações isso deve evocar. Do contrário, como entender o que seja essa “curiosa sensação”? Imagino que a intenção da Levy fosse um pouco no sentido de nos levar para dentro do espírito do Rio de Janeiro e é isso que acaba faltando em alguns pontos.

Acho estranho também que ela tenha decidido incluir os pontos turísticos mais badalados da cidade, o bondinho, o Corcovado, Copacabana, Lapa, etc., porque eles compõem justamente essa superfície do Rio de Janeiro e com isso vão, no meu entendimento, na contramão de dizer o que há lá de mais profundo.

Não sei, acha que faz sentido para você?

Palazo: Foi a mesma sensação que tive, a falta de profundidade. Achei curioso isso dela só apontar os pontos turísticos mais badalados da cidade. Começo a pensar que apesar de todo o papo do corpo que transpira, faltou transpiração para a Levy trabalhar mais o conto ou então ela foi traída pela tal felicidade, incapaz de absorver profundidades.

Começo a pensar que a traição vá além do fato dela trocar o amor europeu pela cidade tupiniquim. Ela também se aplica nas palavras, que seguem o mesmo ritmo do corpo, paralisam na superfície transpirante e não vão além. Não que isso estrague o conto, que creio ter por única intenção a de cantar as maravilhas do Rio de Janeiro. Um conto sobre a felicidade, ou seja, pura bobagem – parafraseando Zambra.

Gigio: Que bom que concordamos, Palazo. Só não sei se acabamos passando uma impressão muito ruim do conto… Talvez nós, e o resto do pessoal que anda criticando a Granta, precisemos mesmo de um tempo no Rio para aprender a falar só com o corpo.

Palazo: É bem provável que a visão de um mineiro e paulista sobre o Rio esteja mesmo equivocada. Então que esse conto seja um convite para transpirar no Rio de Janeiro de Levy. Quiçá, mudamos de opinião.