Via de regra, Jack Kerouac é tido como um autor bastante cool: escreveu On the Road (cuja versão cinematográfica está em cartaz nos cinemas), Os Subterrâneos e Tristessa, em que escreve sobre jovens que vivem de maneira extrema, usando drogas, fazendo sexo loucamente, ouvindo jazz e viajando de carona pelos EUA. Outra de suas facetas é a que aparece em Vagabundos Iluminados, em que esse desprendimento todo adquire contornos mais espiritualizados, e as drogas e sexo dão lugar à meditação, budismo e comunhão com a natureza.
Ele é considerado um dos principais escritores da geração beat, quiçá o último grupo de prosadores e poetas norte-americanos que realmente influenciaram a literatura do resto mundo – e que invadiram o imaginário ocidental por seu estilo de vida tresloucado. É essa imagem libertária e iconoclasta (quem sabe até um tanto romântica), aliás, que deve atrair a maior parte das pessoas a procurar Jack Kerouac: King of the Beats, biografia escrita por Barry Miles.
De certa forma, porém, o livro acaba sendo uma decepção. Não que Miles não conte as aventuras pelas quais o americano de origem franco-canadense passou em sua curta vida. O livro certamente está recheado de sexo, drogas e bop. Mas Miles destrói a ilusão que existe ao redor de Kerouac ao mostrar que o autor de On the road não era tão iconoclasta assim.
É certo que Jack, em partes, faz por merecer a imagem que tem. Usou quase todas as drogas que estavam disponíveis em sua época; viajou através dos EUA pedindo carona, isso sem contar algumas viagens ao redor do mundo; foi amigo bastante íntimo de Allen Ginsberg, Garry Snider e William Burroughs; dormiu com centenas de homens e mulheres; estudou budismo e publicou livros que, hoje, são quase tão canônicos quanto o Ulysses de Joyce.
Mas boa parte do livro é dedicada a falar sobre como Kerouac era chato, reacionário e egoísta. Ele usava seus amigos basicamente para obter dinheiro e histórias, sem nunca dar nada em troca. Chegava até mesmo a se ofender se alguém lhe sugeria dividir algo. Em uma das muitas anedotas do livro de Miles, Burroughs passa a esconder comida para que seu hóspede – Kerouac – não acabe com ela. Mas sua injustiça chegava a aspectos muito mais sérios do que a comida: não hesitava em aparecer bêbado na casa dos amigos, mas os expulsava sem cerimônia de sua própria casa – por ordens da mãe, que não queria “marginais, homossexuais ou judeus” perto do filho. Influenciado por ela, aliás, o pretenso rei dos beats abandonou suas posições liberais para assumir uma postura extremamente conservadora, atacando tudo que pudesse soar anti-americano e vociferando seu apoio ao senador McCarthy – responsável por uma brutal e totalitária repressão aos comunistas nos EUA.
A influência da mãe, aliás, aparece como uma força devastadora. Ainda não consegui decidir se é mérito ou demérito de Miles – mas talvez seja impossível escapar a isso, dadas as circunstâncias – mas Jack Kerouac parece uma caricatura freudiana de um complexo de Édipo nem um pouco resolvido, a ponto de ser impossível ter certeza de que ele não fez sexo com a própria mãe. Explica-se (pelo menos na versão de Miles) o fracasso de Kerouac em estabelecer qualquer ligação duradoura com mulheres, sua misoginia, seu egoísmo e sua arrogância.
Era sobre eles, aliás, que Kerouac costumava escrever – o que faz com que, talvez, lhe coubesse melhor o título de cronista dos beats. Seus melhores livros são focados em outros beats, Jack olhava e anotava, mas não necessariamente fazia ele mesmo as coisas sobre as quais escreveu.
Apesar de desconstruir toda e qualquer imagem de um Kerouac descolado – na verdade, Barry Miles fez ele parecer uma pessoa péssima para se conhecer – parece haver qualquer coisa de admiração pela persona literária de Kerouac. Ele podia ser uma pessoal extremamente difícil e moralmente deplorável, mas mesmo não sendo o escritor mais competente do mundo – parece que tinha alguma dificuldade para escrever qualquer coisa que não usasse primariamente elementos de observação direta – sua obra tornou-se marcante.
E Miles sabe justamente apontar as melhores características do que o objeto do livro fazia: o modo como explorava a realidade, tornando-a aparentemente ficcional; o modo como brincava com a própria ideia da prosa espontânea, exacerbando os fluxos de consciência joyceanos; e o modo como trabalhava a sonoridade da língua inglesa, não pensando no idioma escrito, mas no vernáculo falado, corrente, que se escutava nas ruas das cidades grandes ou nas estradas das cidades pequenas. Soma-se aqui o atrativo de apresentar, ainda que de modo superficial (mas que pode ser facilmente sanado em tempos de Google), uma faceta de Kerouac que é pouquíssimo explorada no Brasil, a sua poesia. Pois, para além de um prosador, ele foi poeta – e, parece-me, logrou um grau bem maior de sucesso.
Enfim, se o livro pode deixar um gosto um pouco amargo na boca dos fãs incondicionais de Kerouac, é um excelente material a respeito não só do biografado, mas também a respeito de toda a geração Beat. Tanto que, se preciso confessar que meu apreço por Kerouac diminuiu, Ginsberg e Burroughs parecem escritores (e pessoas) ainda mais interessantes do que antes.
Nossa, Luciano, sexo com homens e com a mãe? Isso consta como especulação no livro ou é de outras fontes? Pq eu tenho pesquisado sobre o K e nao achei nada disso.
E realmente vou dar uma olhada nessa biografia. Acho curioso que ela desperte o interesse de leitores no Ginsberg, pq já vi tantos envolvidos com os beats culparem-no pelo movimento e a degradação do Neal e do K e blá blá blá.
Ginsberg <3
Sexo com homens: não foi a primeira vez que ouvi falar disso. Até no gibi "Os Beats" se fala ao menos dos episódios entre Jack e Allen. Barry Miles diz que, mais pro final da vida, ele transava bem mais como homens do que com mulheres, quase que exclusivamente. Fala de quando foi estuprado num navio e da alta probabilidade de ele ter dado pro Gore Vidal.
Agora sexo com a mãe é algo mais especulativo. Ele cita lá que Jack teria dito a algum de seus amigos que a mãe teria se oferecido para transar com ele, o que só corrobora o tom edipiano da biografia.
Sério? Acho estranho pq já vi entrevistas do Ginsberg dizendo que teve uma paixaozinha pelo K mas nunca rolou nada, como rolou com o Neal. Ele fala dos beats gays e claramente voloca o K como hetero (o Neal ee tb diz q é hetero, mas comenta que já tinha transado algumas vezes com homens). A própria Carolyn também sempre afirma que o K era hetero. Sei lá, né. Se for o caso, me surpreende mas nao incomoda.
Isso da mãe me surpreende demais. Nunca tive essa visão dela (também né, tolice achar que conhecemos os caras. Eu, hein. Rs).
Sobre a HQ: dei uma olhada uma vez e vi a especulação sobre a sexualidade do K, mas já vi tanta gente criticando a forma como o autor construiu a história que nem fui procurar mais.
A verdade é que nada diss deveria importar, mas a curiosidade tá sempre aí. E a vontade de analisar freudianamente também, rs.
Bem, o Tuca já respondeu tudo.
Mas ó, eu já li mais menções a sexualidade do Kerouac. Não lembro onde, só.
O curioso, Luciano, é que nem precisa ler esse livro pra desmistificar a imagem do Kerouac: a L&PM lançou uma edição de bolso com a biografia do eterno Sal Paradise. De fato, a personagem do roman à clef é mais carismática que o homem que a inspirou.
Li a bio do Shakespeare dessa coleção. Gosto dela porque o estilinho ficou muito a cara das edições originais da Gallimard. Cê leu a bio do Kerouac da LPM (que é consideravelmente mais curta)?
(Eu já tava ligado nessa postura do Kerouac desde que estudei alguns fatos da vida do Ginsberg.)
Dessa mesma coleção, você diz? Sim, tanto que tá esparramada com minhas cópias novas do “On the Road” – minha cópia da Brasiliense tá cheia de marcações, rs.
Nossa, quanta besteira. E só mais uma coisa, a foto postada é de camus e não de Kerouac…
Obrigado pela correção. Já alteramos a foto 😉