Hermann Hesse realmente tinha uma fascinação por bildungsromans. Depois de ler Demian e Sidarta, percorrer as páginas de Debaixo das rodas foi um exercício de palmilhar um caminho semelhante aos que já havia percorrido nos dois livros que li anteriormente. Porém, a leitura valeu a pena para notar como a arte narrativa e as próprias especificidades do bildungsroman estavam latentes e brutas, esperando para serem lapidadas.

Posso estar falando algo bastante óbvio e, para quem acompanha o fórum, também bastante repetitivo, mas explorar o autor lendo sua obra completa, seguindo seus rastros (não necessariamente em ordem cronológica) e analisando as evoluções, as permanências, as obsessões particulares, as questões resolvidas e as que continuam a martelar sua cabeça e instilar-se na sua escrita é um exercício delicioso. E com Hesse não é diferente.

Em Debaixo das rodas conhecemos o jovem Hans Giebenrath, um rapaz provinciano, que deleita-se com a simplicidade bucólica e simples da vida semi-campestre que leva. A cidadezinha em que mora é um idílio que começa a apresentar-se sufocante a seus desejos e sonhos de crescimento intelectual e espiritual. Buscando um meio de poder continuar se dedicando aos estudos e a vida com certos contornos ascéticos, Hans prepara-se com afinco para uma prova cujo resultado pode ser seu passaporte para o seminário de Maulbronn.

Ficando em segundo lugar no teste, Hans conquista o direito de mudar-se para o internato (que lembra as instituições de Demian e de O jovem Törless) onde passa a conviver com outros rapazes em uma vida de profunda dedicação a plenitude espiritual e a estudos da cultura clássica, com especial atenção às epopéias homéricas. Porém, nem só de estudos se move a vida de Maulbronn, mas pela convivência conflituosa de uma porção de garotos pubescentes e de visões de mundo diferenciadas.

Hans trava relações com diversos jovens, como Heilner, Lucius, Hindinger, Wenger, cujo contato e choque de idéias e costumes lhe permite perceber aos poucos como sua vida interiorana parecia inocente, e como o ingresso no universo adulto (ou ao menos não-infantil) está longe de ser um processo tranqüilo, já que é marcado pela confusão, pelas adversidades e pelo desenvolvimento de uma consciência diferente, de uma nova forma de encarar o mundo e o papel a si reservado.

Por mais que possa soar muito similar a Demian e Sidarta (lembrando que esses não haviam sido escritos ainda, já que Debaixo das rodas é de 1906 e os outros de 1919 e 1922, respectivamente), se percebe que Hesse ainda estava enredado nos moralismos e no chamado “novecentismo” alemão. As investidas dele para escapar e transcender as categorias mais amplas de análise e sensibilidade são ainda tímidas e acabam voltando ao seio da segurança conservadora, embora a vertigem de quebrar com paradigmas do estabilishment permanece ecoando fundo em Hesse, como pode ser percebido em sua obra posterior.

Lendo alguns textos para o Mestrado deparei-me com um trecho de um certo Henri Barbusse, que descobri ser um romancista dessa época (início do século XX), cujo mote parece muito acertadamente relacionar-se com as premissas que parecem permear cada obra de Hesse: “Queremos revolucionar os espíritos!”

As obras de Hesse têm esse ponto de partida: colocar o leitor em contato com a transcendentalidade que existe dentro dele próprio, essa infinitude misteriosa que cada espírito contém e que desafia constantemente nosso poder de explicação. A centelha divina, a fagulha cósmica, o fragmento colossal de magnificência que habita nosso ser e nos move, e que encontra tantos vilipêndios e obstáculos para manifestar-se.

(A partir daqui o texto contém spoilers)

Hans Giebenrath acaba seguindo um caminho bem diverso daquele que havia planejado: vai ser trabalhador braçal em uma oficina mecânica, onde passa a partilhar de uma outra modalidade de conhecimento e conjunto de saberes: a camaradagem de fábrica, o conhecimento prático, a versatilidade cotidiana que esse trabalho exige, bem como o preparo físico que tem de lhe ser dispensado.

Talvez as latentes manifestações de esquerda, cada vez mais pujantes, que viriam a culminar com Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo e a Liga Espartaquista estivessem exercendo fascínio sobre o jovem Hesse, buscando formas de expressar-se e de lutar pela transformação de um mundo castrador e impregnado pela ideologia e moral burguesa, cuja estreiteza incomodava suas pretensões humanistas e libertárias. De um modo ou de outro a obra de Hesse é sempre recomendável, pois nos toca profundamente nos desejos reprimidos e nos anseios libertários através de uma linguagem sensível, eloqüente e de um teor humanista como poucos o conseguem.