Em 1936 John Steinbeck embarcou numa viagem que mudaria sua vida e toda a sua obra. Num furgão de padaria adaptado para servir às suas humildes exigências de jornalista sem grande prestígio, o escritor viajou pelas estradas dos Estados Unidos na rota das migrações daqueles que ele veio a chamar de “ciganos da colheita”. Convivendo com eles em seus precários acampamentos, ouvindo suas histórias, seus anseios e suas frustrações, comendo de sua comida, bebendo de suas bebidas e fumando de seus cigarros foi que ele veio a produzir uma série de artigos rica, apesar da brevidade, e que se destaca como um esforço moral louvável da parte de seu autor.

O livro The harvest gypsies – On the road to The grapes of wrath é a reunião desses artigos. Steinbeck viajava a soldo do jornal The San Francisco News, que lhe encomendara escritos sobre o caudal de migrantes que se avolumava pela rota 66 e outras estradas dos Estados Unidos, boa parte deles rumando à Califórnia. The harvest gypsies, como o nome já diz, é o esboço de As vinhas da ira, o romance de 1939 que passou à História como sua opus magnus não só pelo tema abordado, mas pela própria forma com a qual o autor veio a dialogar com a realidade transformada em matéria-prima da literatura.

Os artigos são breves e a linguagem simples. Os sujeitos-personagens são despossuídos e esfarrapados que pela força das circunstâncias e pela conjunção de uma série de fatores sociais, econômicos, históricos e naturais veio a constituir o êxodo que era a paisagem rodoviária dos Estados Unidos nos áridos anos de 1930. Seja pelas mudanças econômicas – que introduziam a grande propriedade e que sofriam com a crise de 1929 – seja pelos fenômenos naturais – secas e as terríveis tempestades de areia que varreram o Meio-oeste do país -, aquelas populações viviam em um regime de miséria que se agravava a cada dia.

Steinbeck não pode permanecer indiferente a isso. Utilizou-se da experiência que a profissão de jornalista lhe proporcionou para tirar dela o maior proveito possível, não para sua glória individual, mas sim por seu senso humanista e pelos sujeitos que encontrara, aos quais nutrira profunda reverência e um senso ferrenho de compromisso: queria pôr em evidência as condições de miséria em que viviam ao mesmo tempo em que cobrava a justiça que lhes era devida.

Mais do que “literatura propriamente dita” – entendida aqui no sentido de ficção -, Steinbeck procura descrever com uma porção de detalhes e um apuro digno de etnógrafo toda a experiência material que cercava a existência desses sujeitos: suas moradias, sua alimentação, as condições sanitárias dos acampamentos, a natureza das aglomerações, as roupas, a organização territorial, a disposição espacial dos barracos e assim por diante. Esse estudo pormenorizado tem um objetivo claro, que se assemelha muito àquele que James Agee e Walker Evans tinham em Elogiemos os homens ilustres: recriar a miséria daqueles sujeitos com palavras na forma de denúncia.

Em cenas desoladoras vemos barracos feitos de papelão, com valas (não-) sanitárias ao seu lado, crianças morrendo de fome, bebês subnutridos, pais e mães em desespero e a dignidade de todos eles sendo varrida do mapa como eles o eram pelos vigilantes, polícias e agentes sanitários. A paisagem aterradora só muda um pouco suas feições quando Steinbeck descreve os acampamentos do governo Roosevelt, em especial os de Arvin e de Weedpatch (o mesmo que aparece em As vinhas da ira), produtos do famoso New Deal: ali é possível encontrar algum esteio e algum tipo de estabilidade, mas sempre em caráter provisório.

The harvest gypsies entra naquela veia de jornalismo engajado e consciente que teve várias expressões nos Estados Unidos pós-Grande Depressão, que não busca a quimérica neutralidade, mas compromissos e mudanças efetivas. O livro, aliás, bem como a experiência visceral que lhe acompanhou, feriram de modo irreversível a prosa de Steinbeck, que nunca mais foi a mesma, e ainda guardou lições importantes para o presente, seja para o jornalismo ou para além dele.