(A coluna desse mês pede uma alteração provisória no título para “Se eu já vi os filmes, etc.”: em português, ambas as adaptações foram intituladas A fantástica fábrica de chocolate, mesmo título da tradução do livro. Em inglês, a adaptação cinematográfica mais antiga foi denominada Willy Wonka & the Chocolate Factory, e a mais recente Charlie and the Chocolate Factory. Nada contra a tradução indiferenciada: é muito melhor, por exemplo, do que tornar Extremamente alto e incrivelmente perto em, argh!, Tão perto e tão longe.)

Eu queria muito utilizar a palavra “remake” nesse texto (ops, já o fiz), mas claramente não é a mais adequada. Ela se refere, por exemplo, a uma refilmagem de uma obra anterior que seja originalmente cinematográfica. É o caso de Duas vidas (mais conhecido como Love Affair) e Tarde demais para esquecer: um filme, com roteiro original, que é refilmado – com mudanças que vão de mínimas a substanciais. Voltando ao chocolate, a diferença entre o filme de 1971 e o de 2005, gritante, torna claro que não estamos diante de um remake, mas de uma nova adaptação cinematográfica do livro de Roald Dahl, tal como a aguardadíssima adaptação de David Fincher de Os homens que não amavam as mulheres – o diretor nem deve ter olhado a versão sueca.

Aparentemente, todo remake ou readaptação exige um posicionamento de quem os comenta: quase ninguém dirá que as duas adaptações são igualmente boas e satisfatórias. Nesse sentido, a preferência muito provavelmente recairá sobre o filme mais antigo: como exemplo disso, o enaltecimento de A letra escarlate, filme mudo de 1926, em comparação com a versão (homônima) estrelada por Demi Moore (e seus longos banhos), lançada em 1995, e pela personagem de Emma Stone em A mentira – outro filme que poderia ser considerado uma leitura moderna da obra de Nathaniel Hawthorne.

Eis então minha opinião: a adaptação de Tim Burton é infinitamente superior à de Mel Stuart (Mel who?). Vi-o no cinema duas vezes – na segunda, infelizmente, só havia cópias dubladas – e não tive dúvidas que assistira a um filme muito mais divertido e mágico do que o anterior. Comparando ambos os filmes a brinquedos de um parque de diversões, a versão com Gene Wilder se aproximaria a um carrossel – possui certo charme, é levemente enjoativo e inofensivo e serve para entreter as crianças menores –, enquanto Johnny Depp protagoniza uma montanha-russa muito bem construída, que utiliza o melhor da tecnologia para fazer todos os seus espectadores se sentirem como crianças.

Após a leitura do livro de Dahl, minha opinião apenas se fortaleceu. Busquei algumas informações a respeito das adaptações na internet e descobri duas coisas interessantes sobre ambas. No que diz respeito à primeira, o autor a odiou; quanto à segunda, o roteirista contratado era fã do livro e, pasmem!, não havia assistido à versão anterior – ou seja, nada de homenagem a esta.

Isso tudo deságua num dos temas mais recorrentes quando da abordagem comparativa de livros e filmes: fidelidade. Sim, o filme de Tim Burton é muito mais fiel. Estivesse o autor vivo, não só teria ajudado na divulgação, como provavelmente teria cedido os direitos autorais para a produção da sequência da história – Charlie and The Great Glass Elevator (em tempo, Burton e Depp já negaram qualquer interesse em filmar uma continuação do filme de 2005).

Isso é perceptível a partir do título, que mantém o protagonismo de Charlie ao contrário da versão anterior, substituído por Willy Wonka no título do filme. Há eventos e detalhes no filme de Burton que poderiam ser tomados por exibicionismo do diretor, mas que são meramente fruto da conjunção das imaginações deste e do autor do livro. As invenções anteriores à reclusão de Wonka, o trabalho do pai de Charlie como “tampador de tubo de pasta de dentes”, o Taj Mahal de chocolate, o país dos oompa-loompas (os trabalhadores da fábrica, viciados em cacau), o elevador de vidro, os esquilos que escolhem as nozes: tudo isso já tinha sido descrito por Roald Dahl em A fantástica fábrica de chocolate.

O que não significa que o diretor não tenha criado situações que inexistiam no livro. O tom mais “dark”, a repaginada no visual dos trabalhadores da fábrica (originalmente, eles continuam a vestir os trajes típicos de sua terra) e os motivos psicanalíticos para a obsessão de Wonka por chocolate – ah, a problemática relação entre pais e filhos… – estão entre os acréscimos de Tim Burton ao original.

Aproximo-me da conclusão do texto e parece que não apresentei nenhuma razão para a leitura do livro. Este é, sem trocadilhos, delicioso. De ler numa sentada. Um pouco moralista (as canções são levemente mais assustadoras e adultas no livro), não surpreendentemente: as peraltices e defeitos de personalidade das crianças más levam a determinadas consequências, temíveis o suficiente para que o pequeno que ouça a história antes de dormir pense duas vezes antes de ser malcriado.

A história também comove de uma forma que, ao menos comigo, só a versão de 2005 conseguiu – o Charlie loiro (interpretado por um péssimo ator) de 1971 parecia estar muito “por cima da carne-seca” para alguém que passava fome:

Dia a dia, Charlie ia emagrecendo. Seu rosto foi ficando terrivelmente pálido e judiado. A pele estava tão grudada na face, que dava para ver os ossos. Se ele continuasse daquele jeito, ia acabar ficando muito doente.

Então, calmamente, com aquela estranha sabedoria que frequentemente parece tomar conta das crianças em épocas de dificuldade, ele começou a mudar algumas coisas em sua vida, para poupar forças. De manhã, saía de casa dez minutos antes, e andava bem devagar até a escola, para não ter que correr. Ficava quietinho, sentado na classe na hora do recreio, descansando, enquanto os outros corriam para fora, atirando bolas de neve e rolando na neve. Ele fazia tudo devagar, com cuidado, para não se cansar.

Descrições tristes como essa são compensadas por outros momentos de “magia” típica dos livros infantis, como no momento em que seus avós descobrem que ele conseguiu um cupom dourado (“O velhinho respirou fundo e de repente, sem qualquer aviso prévio, pareceu ter explodido por dentro. Levantou os braços e gritou: – Iupiii! Seu corpo ossudo levantou da cama fazendo voar a tigela de sopa bem em cima da Vovó Josefina. Num salto fantástico, aquele velhote de noventa e seis anos e meio, que não saía da cama há mais de vinte anos, pulou no chão e começou a dançar, de pijama, a dança da vitória.”), ou quando Willy Wonka nota a magreza do garoto:

De repente, o Sr. Wonka, que estava sentado do outro lado de Charlie, pegou uma caneca no fundo do barco, mergulhou-a no rio, encheu-a de chocolate e ofereceu para Charlie. – Beba – ele disse. – Parece um esqueleto! Qual é o problema? Não tem tido o que comer em casa?

– Não muito – disse Vovô José.

Charlie levou a caneca até os lábios e um chocolate quentinho, cremoso, saboroso lhe desceu pela garganta, até sua barriga vazia. Todo o seu corpo, da cabeça aos pés, começou a tremer de prazer, e um sentimento de intensa satisfação tomou conta dele.

– Gostou? – perguntou o Sr. Wonka.

– Puxa, é maravilhoso! – disse Charlie.

– O chocolate mais delicioso e cremoso que já experimentei! – disse Vovô José, estalando os lábios.

– É porque foi misturado pela cachoeira – disse o Sr. Wonka.

As ilustrações de Cláudia Scatamacchia dão um charme todo especial ao volume: você sente que lê um dos livros paradidáticos que a escola recomendava para que os alunos começassem a gostar de ler.

Mas creio que aquilo de que mais gostei durante a leitura foi perceber a coragem de Tim Burton, um dos diretores que mais admiro, ao criar um filme tão diferente da adaptação anterior, que já conquistara milhões de fãs, utilizando todos os recursos visuais possíveis para homenagear adequadamente o livro em que se baseou. Aproximou-se mais dos delírios imaginativos aos quais nos permitimos enquanto lemos um bom livro. E isso foi mágico o suficiente para mim.