É estranho alguém dizer que apenas leu Waly Salomão, não é? A impressão é que o poeta baiano parece ser poeta até mesmo fora dos livros. Pessoalmente, conheci Waly primeiro pelo nome, sempre citado como exemplo desse termo guarda-chuva que é a poesia marginal. Depois veio sua presença, agudamente capilar, em vídeos vários, como o documentário Assaltaram a gramática e outros registros disponíveis internet afora, além de seus vários poemas musicados por Jards Macalé, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e outros.
Antes de Poesia total, compilação da obra poética completa lançada neste ano pela Companhia das Letras, havia sentido a poesia de Waly, mas, na verdade, nunca lido. Percebi isso sem querer, justamente quando peguei o livro, abri-o e comecei a leitura de fato. Minha primeira reação foi um choque: parte da presença do poeta parece incrivelmente se manter na página, na folha de papel, mesmo em poemas seus de que nunca havia ouvido falar. Ainda assim, apenas parte da presença do poeta resta. Continuei a leitura com isso em mente.
O fato é que, apesar de minha experiência pessoal, Waly publicou, sim, vários livros em vida, justamente aqueles que estão compilados em Poesia total. O primeiro, Me segura qu’eu vou dar um troço (1972), demonstra desde o início uma intenção que permeia toda a poética de Waly: da experiência pessoal, da subjetividade, criar uma experiência indireta, coletiva, que deixe de ser unicamente de sua vivência. O próprio fato de o autor buscar anular sua identidade ao se chamar de “Waly Sailormoon” a princípio também parece ter relação com essa criação de uma personagem que possa ser apropriada pelo leitor sem receio algum.
O fato pessoal, os dias vividos na prisão pelo autor, deixam de ser o foco em meio a uma forma que se situa entre a prosa e a poesia. Toda a poesia inicial de Waly, ao menos até a década de 90, parece buscar um espaço intermediário entre as artes, dentro da exploração verbicovisual da poesia concreta, mas além dela também. Em Me segura, a prosa poética de Waly oscila entre referências várias, da cultura popular brasileira até a indústria cultural da época. A dinâmica prisional, opressora por si só, parece permitir uma liberdade total na criação do autor. Sua técnica é a do campo de concentração. O poeta nesse campo de concentração dialoga por vezes com a figura de um “guerreiro”, que parece simbolizar uma consciência conservadora que quer engolir o poeta.
Waly também é conhecido por sua relação com a chamada contracultura, com a posição alternativa em relação à cultura estabelecida no período da ditadura. Ainda que haja de fato essa relação, não podemos limitar o autor a esse estereótipo. Gigolô de bibelôs (1983), sua obra seguinte, cuja edição inclui os poemas anteriores de Me segura, parece demonstrar a variedade temática do poeta, que busca sempre novos meios, rupturas constantes consigo mesmo até atingir um desencantamento acerca da realidade que dá significado à função do poeta. Tudo isso de um modo bem distinto, bem próprio de Waly, essa figura à margem da poesia marginal, menos conhecida – acredito eu – do que outros compilados recentemente pela Companhia das Letras, como Ana Cristina Cesar (Poética) e Paulo Leminski (Toda poesia e Vida).
Ao contrário desses dois poetas, Waly, como disse, chegou ao público brasileiro, em sua maioria, por canções e vídeos, afinal o acesso e a divulgação dos livros do autor sempre foram menores do que sua difusão musical, em grande parte devido à fama daqueles que musicaram suas letras. Trata-se de um fenômeno parecido com o que viveu Torquato Neto, parceiro de Waly na criação da revista Navilouca, em 1974. Com base na exploração artística de grupos como Noigrandes, dos concretistas, Waly e Torquato parecem ter buscado sempre a experimentação aliada ao popular, característica daqueles tempos tão tropicalistas.
No entanto, novamente, é necessário ressaltar que Waly, assim como Torquato, não pode ser reduzido a um grupo. Sua poética se desenvolveu de modo muito próprio, vagaroso, de modo que, já na década de 1990, fica claro que seu diálogo com a tradição literária vai além do paideuma concretista, referenciado, inclusive, em seus poemas. O poeta, em busca de uma definição para sua situação no mundo, investe na investigação formal de modo absoluto, o que gera essa poesia total. Ele parece ser um romântico em busca de um eu no outro sem fim.
Obras como Armarinho de miudezas (1993) e Algaravias: câmara de ecos (1996) nos conduzem a uma apreensão renovada do projeto poético do autor, determinado desde sempre a eliminar os limites entre as artes. É difícil, inclusive, defini-lo exclusivamente como poeta. Ele assim se definia, é claro, porém a dificuldade persiste. Ao contrário de Leminski, por exemplo, vemos que Waly queria, na verdade, trazer para a poesia tudo que não era poesia, ou seja, a prosa, o cinema, a televisão, a publicidade, o ensaio, a música. Seus poemas visuais não são apenas poemas que exploram a página em branco graficamente. São sempre uma apropriação da cultura visual de seu tempo a fim de ressituar a poesia como possibilidade de apreensão da realidade, numa espécie de détournement situacionista.
De todo modo, confesso ser muito arrebatador escrever sobre Waly. Poesia total, apesar de não trazer ainda todo o material literário do autor (como apontado por Guilherme Gontijo Flores, por exemplo), se mantém como um volume de entendimento difícil num todo. Não se trata de qualquer hermetismo. Acredito apenas ser trabalhoso ler Waly por inteiro, de modo que a leitura do volume se faça sempre com muita reflexão. Impossível, além disso, defini-lo dentro de uma categoria teórica ou algo assim. A crítica à academia, também um leitmotiv nos textos do poeta, se dá justamente pelo vislumbre da total inépcia do intelectual em analisar a poesia de seu tempo por seus instrumentais. Poesia total é, acima de tudo, um mergulho em uma subjetividade estranhamente construída com base em tudo e todos ao seu redor.