Em Cosmópolis, David Cronenberg disseca os sintomas das crises econômicas contemporâneas.

Uma limusine serve de habitat para um jovem magnata exercer seu jogo virtualizado de poder econômico, através de encontros serializados com seu séquito social. Enquanto ele cruza a cidade em sua jornada por um novo corte de cabelo, o mundo vivencia um longínquo caos do outro lado das janelas blindadas. É assim que David Cronenberg, o autor das transformações biotecnológicas, dos corpos reconfigurados e das identidades multifacetadas, sintetizou o “zeitgeist” destes tempos ambivalentes. Neste sentido, Cosmópolis, que entrou em cartaz em todo o Brasil no último final de semana, talvez seja a melhor expressão dessa condição entrópica no início do século XXI.

Adaptação do romance de Don Delillo lançado em 2002 (ano ainda não afetado pelas grandes crises econômicas deste século), Cosmópolis é uma obra que dialoga com sua época no que ela tem de mais asséptica. Para Eric Packer (Robert Pattinson), a existência está condicionada à virtualidade do capitalismo digital, dos não-lugares, dos códigos vazios de números que giram uma roda da fortuna infactível. Os ganhos (e a possibilidade de mais ganhos) se compactam em um conjunto perecível que Packer experimenta com uma automatização quase robótica. Todo este escapismo cria uma temporalidade adjunta, externa a qualquer espécie de alteridade, que é expressa de maneira quase tátil no filme.

A forma com a qual Cronenberg filma a limusine de Packer sugere, o tempo todo, um paralelismo aporético. Planos estáticos, cores frias, um mínimo de movimentação. O diretor desconstrói o tempo de modo a criar um ambiente absorto que configura, no fim, o vazio imbuído nos olhares e nos diálogos. O espaço se torna capsular, inebriado por uma tecnologia evidenciada em telas, neons, luzes e números. A dessincronia com a cidade é sublinhada pela assimilação fria dos cálculos com a qual Packer lida em sua trajetória. Enclausurado em seu mini-mundo capitalizado de cifras, de modo quase a não se infectar com os desconcertos de fora, Packer age com a indiferença que quem trata a situação caótica de fora de maneira operacional. Os fatos não são, apenas aparentam.

Suas relações sequenciais dentro da limusine são progressivamente desconcertantes: um vínculo frágil com sua namorada, um sexo frívolo com sua consultora artística, um aconselhamento prolixo com sua assistente. No refúgio da engrenagem que gira em uma corda bamba de milhões, bilhões, trilhões de zeros, que podem surgir e desaparecer a qualquer instante, Packer se aliena da forma mais profunda. Ele se entorpe assim em um solipsismo que, gradativamente, gera uma inquietação instintiva por testar a dimensão do seu poder.

Cronenberg tem, como poucos, a habilidade de cavar as entranhas mais sinuosas da subjetividade dos seus personagens. Sua filmografia atesta sua especialidade de dissecar as nuances dos comportamentos para exteriorizar, por fim, o que neles se entranha de mais perturbador. Em Cosmópolis isso ocorre de maneira paulatina, com as fraquezas de Packer sendo reveladas, curiosamente, por sua própria exposição à realidade na qual se manteve distanciado, chegando até a uma resolução imagética da sua fragilidade fora de sua bolha motorizada, com os resquícios de torta em sua cara e um corte de cabelo pela metade.

Em uma era que reverencia a tecnologia de modo rasteiro, enaltecendo cegamente suas possibilidades de aproximação, informação e entendimento mútuo, Cronenberg mostra o quanto isso pode manifestar, em sua desconstrução de significados, uma individualidade extrema e doentia. Para Packer, o poder, o tempo todo, se sobrepõe ao prazer. As razões são eclipsadas pela própria impotência da adesão incontrolável a uma ascensão necessária per si, chegando a um ponto de tamanho umbiguismo que faz Packer entrar em rota de colisão com um mundo na qual não tem referência nenhuma. Esta falta de sentido culmina em atitudes sociopatas e insanas, até chegar ao ponto em que mesmo a autenticidade física é colocada em questão, fazendo com que Packer atire em sua própria mão.

Cronenberg explicita, em Cosmópolis, uma crise que vai além de questões econômicas e se tornam existenciais. Packer é a síntese do capitalismo dos novos tempos: imaterial, fluido, repleto de incongruências. E o filme dá o seu diagnóstico: tudo isso corre em uma velocidade que tende a acobertar o confronto eminente com uma realidade efervescente que, no fim, cobrará um acerto de contas.

Sobre o autor: Vinicius Noronha é redator, pretenso comunicólogo e amante da sétima arte. Fã de Fellini, R.E.M. e da ponte aérea Rio-SP, já escreveu crônicas e críticas nos blogs Coisetal, Faixa Bônus, O Bloglodita e Novas Aventuras em Hi-Fi, além de letras de músicas, roteiros de curtas e outros rascunhos. Hoje, se dedica a pesquisar novas linguagens e a dar alguns pitacos sobre filmes de vez em quando.