A obra de ficção do escritor, professor, tradutor, crítico e hábil artista polonês Bruno Schulz não ganhou destaque por sua extensão (três livros,  sendo que o último, inacabado, perdeu-se durante a Grande Guerra), mas por seu incrível humor patético e paródico; suas descrições poéticas dentro da prosa (ponto sempre levantado por estudiosos do polonês) com toques bem desagradáveis (ratos, baratas, prostitutas); a indeterminação do estilo, cuja classificação transita entre “filosofia da literatura” e realismo fantástico, sem ter recebido até hoje uma definição precisa.

A rua dos crocodilos é o conto mais celebrado de Lojas de Canela, um “romance” que compila 12 contos interligados, e tem como destaque a óptica doméstica e ordinária de uma cidade provinciana e dos personagens Jacob, claramente inspirado no pai do autor, e Adela, uma empregada imponente. Jozéf é filho de Jacob e é através de suas percepções de mundo que é possível visualizar a cidade onde vive e o cotidiano – fantástico, real e sensorial – que permeia os contos.

O conto abre com o narrador encontrando um mapa de seu pai dentro de uma escrivaninha cheia de papéis. O mapa é de um detalhamento preciso, com cores e tipografia extremamente elegantes por todo seu centro – concentrado muito em exaltar as minúcias daquela obra de arte cartográfica -, porém quanto mais longe do centro menos detalhes e menos capricho são encontrados, principalmente ao bater os olhos na Rua dos Crocodilos – que não é exatamente uma rua, mas uma cidade. Ao tentar encontrar detalhes dentro dessa cidade fantasma – quase rascunho do acidente – o jovem narrador depara-se no centro dela.

Em uma grande parte da descrição sobre a cidade, o narrador mostra apuro em detalhar os prédios como aparência de papel, as vidraças quebradas e cinzentas (combinando com o céu de mesmo tom) e janelas cegas de escritórios. Por toda sua extensão, um lugar desagradável que parece abrigar os piores tipos, expurgados dos grandes centros e vivendo à mercê de uma quietude tumultuante – um clima taciturno que tomou, pelas fachadas descritas como desgastadas, o que antes poderia ser tomado como airoso.  Um cenário pós-guerra imortalizado pelo monocromático de uma fotografia.

Não há como saber se a causa de tamanha mediocridade é culpa da Grande Guerra ou da política, pois grande parte dos problemas de transporte são causados pela corrupção. Contudo, os moradores se orgulham que nada lhes é privado na cidade e se orgulham mais ainda do ar pecaminoso que as mulheres carregam. Todas têm um ar de impureza impregnado, sem desejos ou sentimentos, apenas impudicícia carregando mais ainda o sentido contraditório de existir tal lugar com esse tipo de pessoas. A ambiguidade característica da cidade pode ser vista nas prostitutas comportadas que podem ser esposas de barbeiros e até donos de café. As fachadas que deveriam atrair clientes, e não expulsá-los, guardam segredos que o narrador não desconfia. Chamado por um travesti à alfaiataria, repleta de vendedoras descritas de maneira pouco atraentes “cada qual com uma mancha na beleza (própria desse bairro de mercadoria defeituosa)”, o narrador encontra um labirinto escondido em forma de sebo com livros, revistas e fotografias até o teto. Tudo escondido e ninguém para querer vendê-los, estão ali à disposição para todos se perderem e nem o mais novo visitante quer se perder por lá.

“A realidade é fina como papel, e em todas as fendas mostra seu caráter imitativo.”

Toda a extensão da Rua dos Crocodilos evoca outro lado, que talvez seja o mesmo, trazendo em si uma caricatura da própria. Schulz faz uma brincadeira que eleva o nível um tanto quanto fantástico desse conto – ou uma simples metáfora entre cidades -, as pessoas parecem iguais e saídas de fotografias borradas, enquanto os lugares se erguem como em uma maquete de papelão. Momento após momento as descrições se prendem a texturas de papel almaço ou machê – lembrando pouco a pouco a escrivaninha onde estavam os mapas e diversos papéis de Jacob. Cada parágrafo exalta o caráter ambíguo daquela cidade repugnante, curiosa, familiar e imitativa. A cidade é o personagem, que se altera, perde seu rumo e volta.

Bruno Schulz narra de maneira precisa e, graças ao seu talento como desenhista, ilustrativa, sendo possível acreditar em um prédio com uma fachada que lembre papelão, ou de pessoas corrompidas, carregadas de pecados invisíveis de que não queremos nos aproximar e tampouco sabemos quais são, mas sabemos que eles existem. A rua dos Crocodilos é curto e denso, não é uma das leituras mais fáceis, por isso é preciso ler e reler para ter certeza da existência daquele cenário recortado, pecaminoso e tão perto da existência.