A máxima ensina: não devemos julgar um livro pela capa. No Cinema, podemos adaptá-la para: não devemos julgar um filme pelo pôster, nem pelo trailer. Quantos bons filmes têm péssimos designs de capa ou trailers que revelam todas as boas cenas, não deixando nada para a sessão?

Com Intocáveis (França, 2011), confesso que contrariei o ditado e me entreguei por semanas à má vontade de pagar pelo ingresso. Mas minha preguiça não era apenas, ou especificamente, pelo pôster sem graça e pouco revelador (dois atores desconhecidos rindo, num fundo gélido, com título de filme de gângster americano e assinatura de dois desconhecidosZzZzzZ…), nem também pelo trailer açucarado, com cara das comediazinhas que já me cansaram. A verdade é que passo por uma fase de birra, quase boicote, ao Cinema francês.A França tem a tradição da fundação do Cinema, filmes históricos, atores e atrizes maravilhosos, diretores incomparáveis. Fui à Lua com Meliès, sofri com Cléo, fumei com Goddard, sorri com Amelie e toda noite rezo para os deuses Lumiére. Essa força transformou o Cinema francês na Elite do Cult e, assim, todo e qualquer cinema de arte tem que estar exibindo um filme daquele país, como se fosse o selo que atestasse sua posição de alternativo. O Reserva Cultural, centro de filmes cults em São Paulo, tem atualmente cinco filmes franceses entre os sete que estão em cartaz.

Com a força da Imovision e da Paris Filmes, duas gigantes bem assentadas no Brasil, temos sempre disponível uma variedade de filmes franceses comparável aos blockbusters americanos que, em muitos casos, “ocupam espaço” nas salas com obras não mais que medianas (como O Garoto da Bicicleta e Românticos Anônimos), deixando de fora do circuito outros interessantes filmes alternativos – e até mesmo alguns filmes nacionais pequenos e de qualidade.

Como cri-crítico incurável, fiscal voluntário e chato por natureza, espero que aguardados filmes, como o novo e premiado Pietà, do coreano Kim-ki Duk, tenham distribuição digna no país. Mas, depois dessa longa digressão (desculpem, mas o desabafo era necessário), voltemos a Intocáveis:

Passadas semanas desde sua estreia, li (ainda emburrado) que Intocáveis havia se tornado o filme francês mais assistido da história, superando o idolatrado O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, de 2001.

Assinado pelos desconhecidos Olivier Nakache e Eric Toledo, Intocáveis acompanha Driss (Omar Sy), negro, morador do subúrbio, atolado em problemas familiares e a um passo de se ligar a gangues da periferia, que é contratado como motorista-faz-tudo pelo milionário tetraplégico Philippe (François Cluzet). Estória baseada em fatos reais, a sacada do roteiro é usar sem freios piadas impensáveis e pesadas, um refrigério em meio à negra fase atual do politicamente correto.

Omar é todo carisma como o funcionário que faz o chefe reaprender a viver – e por isso ganhou o César de Melhor Ator deste ano, prêmio inédito para um negro. Praticamente todo o filme é um bate-bola entre os dois, e é maravilhosa a cena em que Driss faz a barba do patrão deprimido, brincando com vários tipos de cortes, entre eles o de caubói e o de Hitler, provocando em Philippe (e em toda a plateia) aquela maravilhosa gargalhada que, pela moral e bons costumes, apreendemos a sufocar.

Esse é o valor desse filme: brincar com as condições mais áridas da vida. Para mim, para você também, provavelmente, é impensável estar preso no próprio corpo e ser dependente de terceiros, por mais próximos e amáveis que eles sejam (como são os funcionários de Philippe), até mesmo para as tarefas mais básicas e íntimas.

Assim, o tom dessa comédia improvável fica entre a delicadeza de O Escafandro e a Borboleta (maravilhosa obra-prima de Julien Schnabel) e as comédias que nos fazem sentir bem e enchem o peito com a esperança necessária.

Paguei o preço por minha birra, perdi três semanas de uma excelente sessão, onde vi a plateia gargalhar como há tempos não via (e o melhor: com piadas inteligentes, sem apelar para o patético humor-do-peido das comédias americanas). Não à toa, Intocáveis já arrecadou mais de $360 milhões ao redor do mundo (tendo custado $10 milhões de euros), alcançou a #75° posição no Top 250 do IMDB e no Brasil, felizmente, já levou 200 mil pessoas às salas.

Por obras assim, por Cinema de qualidade, pela arte que enche o coração, eu digo: Viva la France!