(Essa coisa de ter uma coluna mensal é uma benção e uma maldição. A parte da benção é que dá tempo de ter uma ideia e desenvolvê-la ao máximo. O lado ruim é que não dá pra falar sobre tudo: tipo, sobre o trailer que vi umas 15 vezes num dia desses e que tenho visto diariamente desde então; ou sobre uma lista de leituras que vi na internet e que tenho seguido à risca; ou sobre um hábito meu desde criança, que poderia ser acompanhado de um “Manual prático de bons modos em livrarias”; ou sobre como a última coluna da Vanessa Barbara mexeu demais comigo; ou sobre o tipo de sociedade que fez um guri na minha timeline apagar, depois de poucos segundos, um desabafo em que se assumia gay. Divago. Abaixo, o texto sobre o qual passei o mês pensando.)
Preto e branco
Durante a FLIP, em meio a McEwans e Zambras e Egans e Shapiros e Drummonds, já se começava a falar em Cinquenta tons de cinza. Ainda não tinha tomado conhecimento dos detalhes da trama (não como depois de ver uns vídeos e ter lido as resenhas da Anica e de uma outra guria, que ficou famosa), mas confessei à Raquel, essa linda, que tinha achado o título forte e que provavelmente o usaria para definir… meu guarda-roupa. Até poucos meses antes, eu o chamava de Variações entre o preto e o branco.
Houve um momento em minha vida em que decidi que todas as roupas novas que compraria seriam nas cores preta, branca ou cinza. Não foi lá uma escolha muito consciente, mas um dia saí de casa querendo comprar um cardigã e, quando voltei, percebi que as sacolas e sacolas eram de roupas exclusivamente nessas cores (com exceção do pesponto turquesa que formava losangos num suéter branco).
Mas qual a razão de citar tudo isso? Simples: em minha coluna anterior, citei um tumblr que apresenta (apresentava: foi desativado; a imagem acima representa um exemplo do que falo a seguir) combinações entre moda praia e as leituras de verão. “Only hobos read books that don’t match their swimwear” é o seu lema. O amigo estilista que me mandou o link comentou: “minha arte somada à sua”. A indicação me fez pensar em como o mundo ficaria mais bonito se (1) todo mundo andasse na rua com livros e se (2) as capas destes combinassem com as roupas dos indivíduos.
Essa foi a minha obsessão do mês. Na medida do possível, tentei combinar os livros que lia (enquanto caminhava em direção à academia) com as camisetas que vestia. Não ficou nada tão perfeito quanto as imagens do tumblr citado, mas deu pro gasto. Uma camiseta vermelha, associada a uma bermuda preta e branca, combinava com a leitura efusiva de On the road – o manuscrito original, de Jack Kerouac; uma camiseta azul com instrumentos musicais “bordados” (ou assim parecem, pois é tudo feito com serigrafia) combinava com Cidade aberta, de Teju Cole; uma mistura de bermuda e camiseta em diferentes tons de verde, cobertos por um casaco preto e verde, junto com tênis brancos combinava com a bucólica capa de O fim de semana, de Peter Cameron.
Uma simples camiseta branca, associada ao fato de estar indo para a academia, combinou muito bem com a leitura de Um dia essa dor será útil. O título, que adequadamente faz referência direta a um acampamento de verão focado em grandes esforços físicos, parece uma variação da frase repetida por meu irmão durante os treinos diários: “No pain, no gain”.
O cúmulo da situação toda se deu quando as aulas do mestrado retornaram. Eu tinha uma apresentação programada para a semana exata em que a greve terminasse. Discursaria sobre Antonio, romance de Beatriz Bracher. No meio de minha fala, me dei conta de que eu e mais duas pessoas na sala (incluindo a professora) estávamos vestidos com as cores utilizadas na capa desse livro (que foi, aliás, uma das melhores coisas que li no ano).
Only hobos… vocês sabem o resto.
Invisível
A obsessão pela combinação “capa de livro + camiseta” foi particularmente pródiga em resultados com um livro em especial. Eu poderia ter escrito “um livro especial” e não estaria mentindo.
O livro em questão é Seu corpo figurado, de Douglas Arthur Martin. Não resolvi lê-lo só pelo autor ser meu xará. As razões, curtas e grossas, foram: a curiosidade (pelo título da coleção, Just a bubble; pelo nome da editora, A Bolha; pela proposta meio indie delas, editora e coleção) e a vontade de ler mais um título traduzido por Daniel Galera, enquanto o novo romance dele não sai (não sei se vai fazer muito sentido, mas eu explico melhor isso nesse texto). Os volumes da coleção, empilhados juntos (ainda que num cantinho da Livraria Cultura e ainda que os exemplares não fossem lá muitos), tinham forte impacto visual e atraíam o olhar pela combinação de cores.
Não sei em que medida esse “impacto visual” foi percebido da mesma maneira pelas outras pessoas. Em outras palavras: é possível que a mesma coisa que achei muito bonita tenha sido, para os outros, invisível?
No Skoob, consta que duas pessoas o leram e que uma o abandonou. No Livreiro (aparentemente, há pessoas que o usam), o livro sequer foi cadastrado – só há outras obras em inglês do autor. Até semana passada, antes da resenha que escrevi para o Jornal Rascunho, o Google não indicava nenhum texto específico sobre o livro. Isso mesmo: zero. Mas os dados não se restringem ao público brasileiro. No Goodreads, o livro foi marcado na estante de 10 pessoas; 5 delas informaram que ainda vão ler; 3 destas fizeram a marcação há mais de três anos. Fora isso, encontrei um parágrafo de resenha num site, duas frases na Amazon e só.
Você se acostuma às maravilhas que são as redes sociais para livros e conforta o coração porque crê que sempre haverá muitos desconhecidos com os quais poderá comentar sobre os livros que acabou de ler. Até perceber uma falha na Matrix.
Todas essas cores
Este ano, os ipês floresceram duas vezes em um intervalo de poucas semanas.
Gosto muito dessas árvores. Do nada, seus galhos explodem cheios de cor. Todo aquele amarelo parece que vai subir, subir e se misturar com o azul. Depois, finda caindo nas ruas e calçadas, um tapete que não ousamos achar que merecemos, até que os galhos se desnudam completamente, como rastros de fumaça. Ipês são fogos de artifício.
Eu tenho um apreço especial por algumas coisas belas, mas frívolas, invisíveis, não afeitas à permanência. Isso: não afeitas à permanência. Ipês, fogos de artifício, bolhas de sabão, palpitações, ondas de mar e poesia. Quando você acha que só tá começando, já acabou. E é melhor que você tenha aproveitado bem o momento.
Muitos parágrafos de Seu corpo figurado são assim: mal começam e já terminam. Muitos sequer alcançam a margem direita da página e, por isso, mais parecem versos. São versos. Três novelas que possuem mais versos do que parágrafos, reunidas no mesmo volume. E que demandam uma análise poética, plurissignificativa – que, se não é das mais fáceis de serem feitas, também costuma ser das mais proveitosas e recompensadoras.
Mas a questão é que, de vez em quando, a gente quer ter com quem comentar um livro. Não é?
Admito que, por um momento, fiquei de cara. Há meses todo mundo fala de um dos livros mais vendidos no mundo e todo mundo compra esse livro porque a imprensa só fala nisso e aí todo mundo fala do livro que todo mundo está comprando e os que não tinham comprado compram também para poderem falar com propriedade e assim por diante. Mesmo que um monte de gente fale mal, o que poderia afastar alguns leitores, há os que leem ironicamente, além de toda a propaganda das turmas do “veja por seus olhos” e do “você só pode criticar se já tiver lido” e do “gosto é gosto”. Quase todas as editoras sacaram da gaveta suas trilogias eróticas. Lá fora, diversos títulos foram criados para serem comprados pelo leitor mais desatento – “It was Fifty Shades of Grey? Damn it! I’ve just bought Fifty Shades of Gay…”.
Depois de uma conversa com uma amiga, percebi que estava pirando errado. E voltei às minhas CNTP: ignorar tudo que envolva Cinquenta tons de cinza – com exceção das minhas roupas, essas lindas.
Seu corpo figurado não foi lançado para ser um fenômeno de vendas, muito menos para disputar espaço com o livro supracitado. No ranking de mais vendidos da Amazon, ele está em 245.428º. A linguagem, ainda que eu a considere particularmente atrativa, é elaborada demais para ter um apelo muito amplo perante o público; as repetições de palavras, por exemplo, não parecem mero descuido na escrita ou facilitação da leitura, mas buscam criar ressonâncias metafóricas. O autor não é um grande figurão – convenhamos, nós costumamos restringir nossa cota de livros difíceis aos autores que todo mundo admira: minhas pesquisas indicam que a época em que mais se falou de Douglas A. Martin foi quando ele lançou Outline of My Lover (esgotado), em que ele romanceou seu relacionamento amoroso de 6 anos com Michael Stipe, vocalista do R.E.M., e produziu um interessante roman à clef sobre como é viver com uma celebridade.
E, mesmo assim, Seu corpo figurado veio para o Brasil, traduzido por Daniel Galera e lançado com uma capa muito bonita. E, da mesma forma que Douglas A. Martin veio, nossa Hilda Hilst foi traduzida e publicada nos Estados Unidos, por meio da iniciativa da mesma editora, em parceria com a Nightboat Books – a mesma que publicou originalmente o livro de Martin. Estas são algumas dessas coisas que não têm muita explicação racional (ou mercadológica), mas que são lindas de se ver quando acontecem.
Não tenho muito essa besteira hipster de enjoar de algo que curto só porque todo mundo está falando sobre isso. Fico até feliz quando descubro que compartilho um interesse em comum, desses inesperados.
Mas, no momento, ainda sinto como se fosse o único brasileiro que leu o livro. E isso tem algo de especial, de precioso. E combina muito bem com o retorno às roupas mais coloridas, com os ipês que florescem duas vezes, com palpitações (é só nervosismo ou aquilo tá fazendo bem ao seu coração?), com a beleza proporcional à efemeridade dos fogos de artifício e das bolhas-de.
Já li Incubação e é maravilhoso. Estou louca para ler todos =D
Esse é um dos próximos que vou ler. Tava indeciso entre começar com uma tradução do Galera ou do Pellizzari. Nos próximos meses pretendo devorar a coleção Just a bubble.
Tuca,
Acredita que de todo o seu post, muito bom por sinal, o parágrafo que mais gostei foi aquele sobre os Ipês? Foi uma poesia simples sobre uma coisa simples e eu também tenho apreço por essas coisas simples e belas do nosso dia a dia. Vou anota-lá, com os devidos créditos. Você conseguiu definir lindamente o que os nossos queridos Ipês são.
Carol
Acredito, sim. Porque até eu fiquei relendo e me perguntando se eu não tinha copiado isso de algum lugar, hahahaha.
Num desses dias, indo pra academia, tive um estalo e fiquei lembrando da comparação inteirinha pra anotar quando chegasse em casa. Que bom que você gostou.
Também amo ipês. E fiquei feliz que, por causa do tempo louco (acho), eles tenham florescido duas vezes neste ano. ^^
Beijo.
Demais sua coluna, Tuca! (Só pude ler agora, depois de terminar a minha) Gostei muito da maneira como suas obsessões foram se articulando até chegar a um elogio das obras do D. A. Martin. Nem tinha ouvido falar dele, por sinal, mas fiquei bastante interessado. ^_^
(E esse gif da menininha vai para o All-Time Best Gifs, fantástico, haha)
Não quero perder nunca mais esse gif! É lindo!
Valeu, Gigio! Aguardando a TUA coluna.
Esse Tuca é muito chato.
E extremamente carente. Credo.
Pô, Tuca, tá na hora de mudar de terapeuta, hein? Essa aqui já violou o sigilo médico-paciente. 😛
Hahahaha. Eu ri.
(Mas vou mudar, sim. =P)
Brigado pela visita, Fernanda, e volte sempre.
Não mude, Tuca. Os incomodados que parem de ler a coluna. (brinks)
E concordo com alguém aí que disse que o parágrafo dos ipês foi o melhor.
Pena que não te vejo mais com tanta frequência, para poder rir dessa vibe de combinar capa de livro com roupa. No mínimo bizarro, hehehe. O problema é se a pessoa estiver lendo o The Big Penis Book, da Taschen…whatever….
Típico de você, Sérgio. hahahahah. Saudade dos comentários priestleyanos. =P
Valeu! Repito: também curti escrevê-lo. ^^
Ah, a coisa da combinação de livro com roupa foi mais na labuta diária da academia. Não daria pra fazer isso TODA vez que eu saísse pro centro, por exemplo.
O Big Penis Book seria um graaande problema para ser ~lido~ por um combinador de roupas. Aliás, já seria um problema para ser ~lido~ por leitores andantes. Imagina, você andando e todo mundo vendo não só a capa mas as fotografias internas? E, pelo que vi numa loja da Taschen em Paris (*cof* metido a besta *cof*), todos os livros dessa coleção (há também Breasts, Pussy, Butt, Legs, fora os em 3D) são BEM pesadinhos. Mais que um 2666, um Liberdade e um Guerra e Paz JUNTOS. (rs)