Todos que leram 1984 devem se lembrar de um dos lemas do Partido: “guerra é paz”. George Orwell, diante da ascensão dos totalitarismos do século XX, seguia aquilo que vinha sendo dito desde o século XIX por muitos acerca da forte ligação entre o Estado moderno e a guerra, uma ligação, podemos dizer, intrínseca de existência. A própria noção de Estado, assim, pressupõe o conflito com outros poderes, outros domínios, outros Estados. A “paz” que essa guerra gera seria a estabilidade do poder, ao menos enquanto este se mantiver como vencedor das batalhas.

Todos os governos imperialistas sempre atuaram de acordo com esse princípio presente na ficção de Orwell. A Europa é o “centro” do mundo (junto com os Estados Unidos) até hoje por sua tradição de guerras e dominação de outros, em especial por meio de ocupações, invasões e, é claro, da colonização, como nós, brasileiros, bem sabemos. Apesar disso, há um certo sentimento por vezes de que os meios de se manter esse domínio podem ter mudado, afinal acompanhamos ao longo do século XX todo o processo de descolonização e tudo mais. Ainda assim, resta o “centro”, bem como toda a opressão por ele imposta. A arte francesa da guerra (2011), de Alexis Jenni, é um romance que lida com essa questão, só que de dentro, digo, da própria França.

Ganhador do prêmio Goncourt no ano de seu lançamento, o livro de Jenni, o primeiro do autor-revelação, dialoga em muito com toda a literatura francesa precedente que buscou contestar a posição de seu país como nação dominadora, imperialista, colonialista. Vê-se isso desde figuras como Albert Camus, passando por todos aqueles que nas décadas de 50 e 60 lutaram contra os massacres feitos pelo governo do general De Gaulle na Argélia contra a independência da então colônia.

Há também uma relação menos direta com um experimentalismo literário desse período, visto em autores como Pierre Guyotat. Ao se tratar da guerra, do conflito, da turbulência social, parece existir uma constância entre os europeus em seu desejo de explorar novas formas procurando concretizar visões acerca de tudo que veem. Jenni, ainda que moderadamente, tenta o mesmo em A arte francesa da guerra, por seu “híbrido” de romance, ensaio e – por que não? – autoficção.

A estrutura do romance é basicamente uma alternância entre dois tipos de capítulo: “comentário” e “romance”. Os comentários se referem aos pensamentos e a ocasionais relatos de vida de um narrador em primeira pessoa, aparentemente na França dos tempos atuais, ao menos depois da Guerra do Golfo (1990). O romance, conforme a leitura, se refere à narração da formação de Victorien Salagnon, que o “comentarista” dos tempos atuais conhece. Seus relatos de soldado desde a resistência francesa à ocupação nazista, como maquisard, até a longa Guerra da Argélia o fascinam e são contados à parte, como “romance”.

Ainda assim, surge uma séria problemática desde o início do livro: Por que a necessidade da guerra? Qual a razão de todos os franceses se sentirem relacionados a ela e, inclusive, parte dela, mesmo que não vão para o front? O narrador, desde o primeiro “comentário”, dispõe sobre sua dificuldade em entender os mecanismos da “arte da guerra” francesa, mas se vê como responsável histórico, como alguém a prestar desculpas por todos. A guerra para a França parece ser seu meio de sobrevivência enquanto nação, não importando se os combates são contra um inimigo externo, como um país invasor, ou contra inimigos internos, que seriam, na visão conservadora do francês atual, os imigrantes ou, na visão do Estado, todos aqueles que se recusam a obedecer simplesmente. Essas duas tradições nacionais – de xenofobia e de revolta popular – são dois paradigmas pelos quais todo esse primeiro livro de Jenni se estrutura.

Outras referências mais recentes surgem como ponto de comparação com a obra de Jenni e podem ajudar em sua compreensão, como Le procès de Jean-Marie Le Pen (1998), de Mathieu Lindon. O referido processo judicial (“procès”), no caso, nunca aconteceu, porém a verossimilhança da obra de Lindon em relação à realidade do país nas últimas décadas assusta, em especial sob governos de extrema-direita como o de Le Pen. O leitor desatento – como este que vos escreve – pode, inclusive, duvidar da ficcionalidade do que é narrado.

A arte francesa da guerra, no caso, também nos impressiona pela verossimilhança do relato, como muitos romances históricos. Trata-se de uma espécie de épica moderna, sem versos, sem exaltação de um herói ou de um império. O “império francês”, como é referida a República francesa – com maiúscula – na visão de um personagem estrangeiro em meio à resistência, o judeu grego Kolayannis, é exposto em todas suas contradições que aparentam uma gradual desintegração.

A sensação de decadência por vezes demonstrada pelo “comentador”, de tempos mais recentes, se contrapõe à formação do soldado a partir da apatia da ocupação, justamente a vida de Salagnon. O comentador, no caso, parece ver que o espírito de guerra francês, que antes causava massacres longe dos olhos de seu povo, da cidade das luzes, se tornou interior em uma guerra civil sem fim que torna todos violentos:

 

Poderia ser discutida a prática: conhecemos muito bem as colunas blindadas; isso explica por que ninguém as nota. As guerras travadas lá fora nós as travávamos desse modo, e nós as perdemos pela prática da coluna blindada. Pela blindagem nós nos sentíamos protegidos. Brutalizamos todo mundo; matamos muita gente; e perdemos as guerras. Todas. Nós. (p. 218)

 

“A arte da guerra não muda”, diz-se no romance. A guerra só muda de alvo, de local, afinal somente ela pode continuar a manter a “paz” sob a ordem do Estado, essa ordem que surge por meio da constante repressão dos desobedientes, dos que não se adequam ao estabelecido. O assassino do romance de Lindon, como francês branco, ligado à extrema-direita, entende e contribui para a perpetuação da arte francesa da guerra. E diria que o romance de Jenni mostra que, junto com a arte da guerra, a literatura francesa segue como expressão da cada vez mais complexa configuração social – e moral – da França, em que a resistência sempre demonstra um velho desejo pela liberdade.