Ryūnosuke Akutagawa, que viveu entre 1892 e 1927, é um dos escritores mais importantes e renomados do Japão, a ponto de Haruki Murakami se referir a ele como um dos autores nacionais do país. No entanto, Akutagawa me era totalmente desconhecido até que Rashomon and Seventeen Other Stories chegasse nas minhas mãos por um empréstimo.

Comecei o livro no escuro, sabia apenas do gosto de quem me emprestou e que o filme de Kurosawa na verdade só utilizava o cenário (um portão em ruínas) do conto chamado “Rashomon”; a narrativa (diversas pessoas contando versões diferentes para um crime) era a de “In the Bamboo Groove”.

Talvez porque a maior parte dos leitores chegue a Rashomon tão desavisados quanto eu, a edição da Penguin conta com uma biografia e uma introdução de Murakami, em que ele explica a relevância do autor na literatura japonesa, sua personalidade conturbada e a trajetória de sua literatura.

Akutagawa começou ainda jovem a recontar narrativas populares japonesas e é essa parte de sua obra que, segundo Murakami, possui maior excelência formal. São contos curtos, diretos e extremamente bem construídos, mas foi o último deles, o longo e perturbador “The Hell Screen”, que começou a apontar o que achei mais fascinante: sua capacidade de pintar o inferno.

Essa primeira parte conta com cinco contos curtos: “Rashomon”; “In a Bamboo Groove”; “The Nose”; “Dragon: The Old Potter’s Tale”; “The Spider Thread”. Todos eles se passam no fim do período Heian, indicado pelo tradutor como uma espécie de era de ouro japonesa cujo declínio gerou tal sensação de incerteza a ponto dessa sessão do livro ser chamada “Um Mundo em Decomposição”. São narrativas breves, de poucos personagens e impressionante rigor formal. De forma simples, direta, Akutagawa constrói pequenas joias que em no máximo dez páginas oferecem um vislumbre de seres humanos em um mundo que se altera. A sensação de perda e incerteza perpassa esses cinco contos e chega em seu ápice na última história dessa primeira parte: o consideravelmente mais longo “The Hell Screen”.

“The Hell Screen” conta a história de um pintor detestável, porém genial. Yoshihide, uma pessoa terrível é, por seu óbvio talento, o artista preferido de um grande lorde, que encomenda a ele uma representação dos infernos. Yoshihide é conhecido pela vivacidade de sua pintura e afirma que para que sua obra alcancasse toda a magnitude possível, ele precisaria ver ao vivo uma bela mulher queimando dentro de uma carruagem em chamas. O conto é todo feito de sutilezas e ironias e desde a metade o leitor intui, mas se recusa a acreditar, o trágico fim que o autor anuncia. “The Hell Screen” é uma descrição tão vívida da descida aos infernos quanto o quadro que está sendo pintado em sua narrativa, e também como a narrativa parece anunciar o fim trágico do escritor.

As duas partes seguintes do livro são chamadas de “Under the Sword” e “Modern Tragicomedy”. A primeira contêm contos que se passam no período em que o Japão foi governando por uma burocracia militar, são histórias que envolvem samurais e os primeiros contatos da população japonesa com o cristianismo, trazido por missionários portugueses. O título é apropriado e a tensão que segura as estruturas desse mundo é brilhantemente relatada pelo escritor, ainda que algo da sutileza e da maestria de construção dos primeiros contos do livro não esteja mais presente.

“Modern Tragicomedy” talvez seja o trecho menos marcante de todo o livro: trata-se de três contos um tanto surreais, que embora pareçam buscar o tipo de exposição das partes mesquinhas da natureza humana de que o melhor humor é capaz, se apagam frente à dramaticidade do que vem a seguir.

Akutagawa se suicidou aos 35 anos, e os últimos contos, agrupados sob o título de “Akutagawa’s Own Story”, são relatos pessoais, autobiográficos, de sua deterioração. Os cinco contos misturam personagens reais, passagens de sonho e impressões do escritor, e pintam um retrato do desespero tão honesto e dolorido que a impressão é exatamente a de adentrar um inferno pessoal. “Daidoji Shinksuki: The Early Years” e “Death Register” parecem um apanhado de notas biográficas de um alter ego mal disfarçado do escritor, são passagens breves desconexas, mas desconcertantemente honestas. “The Writer’s Craft” e “The Baby Sickness” nos mostram o conflito entre o escritor e o homem, o pai e o artista e a imensa insegurança e vaidade escondidas sob a fachada de um gênio. Os dois últimos contos, “The Life of a Stupid Man” e “Spinning Gear” são a versão psicológica de “The Hell Screen”: um mergulho profundo, sem disfarces, no inferno do escritor.

Ao fim, Akutagawa é um escritor cuja prosa tem uma força imensa, suas narrativas são curtas, densas, perfeitas em cada parágrafo. Ele nos apresenta um mundo desconhecido e encantador, repleto de samurais, monges e símbolos que o leitor tem a sensação de que não pode penetrar. Ao mesmo tempo, tratava-se de um ser assombrado, paranoico com a loucura da mãe, que ele acreditava ter herdado, e que transitava por um mundo repleto de demônios que ao aparecerem em sua obra o tornam tão interessante.