Em minhas poucas incursões no terreno da literatura africana, Chinua Achebe foi um dos autores de quem mais gostei, especialmente pela simplicidade sincera de sua narrativa e a concomitante complexidade subjacente de sua abordagem histórica e artística. O romance O mundo se despedaça, publicado em 1958, abre uma série de livros sobre os descendentes de Okonkwo, um dos chefes de Umuofia (uma das nove vilas do povo ibo), os quais passam, pela sua condição compartilhada com diversos povos africanos – nigerianos ou não -, a ser uma espécie de modelo que carrega as marcas de diversas trajetórias históricas, tanto individuais quanto coletivas.
O mundo se despedaça é seguido de A paz dura pouco (1960) e A flecha de deus (1964), fechando o que alguns chamam de trilogia africana. Uma das melhores partes da série, na minha opinião, é a forma como Achebe, pela extensão das páginas, é capaz de apreender também a extensão do tempo. Não do tempo cronológico ou do tempo natural, mas do tempo dos homens, o tempo histórico. Ao longo dos livros vê-se o processo histórico se desenhando, não em sua linearidade, mas no típico descontinuum que o constitui, com idas, vindas, avanços, retrocessos, manutenções, rupturas, harmonias e conflitos. A leitura histórica de Achebe não peca por superficialidade, pois o escritor está atento mesmo às mudanças mais sutis, desde as grandes transformações estruturais – na organização do poder político, por exemplo – até os conflitos mais aparentemente particulares – como os sentimentos religiosos ou a relação entre pais e filhos.
O início da saga, o romance de 1958, está fincado num período em que a estrutura tribal está muito bem estabelecida. O ritmo da vida, tanto cotidiano quanto geral e espiritual, segue a cadência das organizações antigas, as quais regem todo o modo de vida ibo em suas mais diversas ramificações existenciais, desde a divisão das tarefas entre os sexos e a educação dos filhos até os costumes guerreiros e a organização social dentro do clã e das vilas.
O cotidiano, por exemplo, está permeado das crenças mitológicas ibo: os deuses, os rituais de purificação, as festas comunitárias, a plantação e a colheita, o casamento, os chefes espirituais etc. Ou seja, trata-se de um mundo em que a sociedade ibo ainda mantinha-se “intocada” pela colonização europeia, de modo que havia uma preservação muito forte e socialmente endossada das tradições dos antepassados. Aquele arranjo social e histórico, que era mantido por gerações e gerações, havia se estabelecido e se arraigado fortemente nos corações e nas mentes de seus habitantes e cultivadores. Havia, portanto, uma identificação longamente sedimentada dos habitantes com sua terra e com as práticas que conduziam sua existência.
Tão interessante quanto as descrições de Achebe sobre os costumes e usos dos ibo, é o retrato do escritor sobre esse mundo: apesar de todas as suas agruras e dificuldades, ele era um mundo tranquilo, sob o controle de seus habitantes, que proporcionava-lhes dignidade e segurança. Em que pesassem a severidade de alguns maridos e alguns pais, a árdua rotina de labor ou a rigidez de determinados costumes, a vida em Umuofia, a julgar pela fluida prosa de Achebe, era bastante aprazível. Não era um paraíso no senso bíblico, mas a impressão geral do modo de vida ibo é a de que ele é bastante bom.
A manutenção dele, no entanto, pesava sobre os ombros dos chefes familiares e guerreiros das tribos: eram eles que deviam observar as defesas da tribo contra inimigos externos, fossem eles pragas naturais ou tribos inimigas. Por detrás desse escudo belicoso, as mulheres e os velhos lutam suas próprias batalhas, mantendo a educação das crianças e dos jovens em concordância com as dinâmicas da tradição e do modo de vida, afinal, todo o mundo ibo se mantinha somente porque haviam sujeitos dispostos a sustentá-lo e tomá-lo como caminho satisfatório o suficiente para ser trilhado e ensinado à posteridade.
Devido a essa tenaz resistência, a ocasião da chegada de homens brancos não foi tida como bom augúrio pelos ibo. Haviam algumas histórias sobre um certo “cavalo de ferro” e homens albinos, mas elas soavam mais como lendas distantes do que propriamente uma realidade concreta.
Primeiramente através das tentativas de conversão religiosa, com o cristianismo, a influência externa foi se fazendo sentir entre os ibo, disseminando-se e sendo absorvida sob formas várias pelos habitantes. Prevalecia uma atitude receosa, descambasse ela para o amedrontamento ou para a belicosidade. Houveram debates sobre as decisões a serem tomadas, e mesmo as festas comunitárias, as lutas entre os homens e os festejos matrimoniais se transformaram pouco a pouco com a insistência dos missionários. O choque cultural era evidente.
Os conflitos internos foram potencializados pela permanência dos cristãos, e cada vez mais sujeitos ibo eram convertidos à fé externa. A construção de uma igreja se constituiu num marco que agudizou a tomada de posturas: as diferenças se tornaram explosivas e o modo de vida ibo já estava desestabilizado pela conjunção de transformações, onde se entrecruzavam os elementos externos e internos: a atitude dos chefes do clã, o fortalecimento de uma nova geração com novas concepções, os avanços proselitistas e assim por diante.
Com os fios do drama real e histórico, Achebe vai costurando sua ficção, apresentando a seu modo o processo histórico que foi (e que continua sendo) chamado de progresso e de civilização da África: aquilo que, em O mundo se despedaça, é a gradativa destruição da cultura ibo. Não só da cultura, aliás, mas do modo de vida e de grande parte dos sujeitos que buscavam cultivá-lo.
O título do livro exprime muito bem o que foi esse processo do ponto de vista de Okonkwo, dos demais moradores de Umuofia e de diversas outras vilas e tribos africanos: um mundo se despedaçando. Todo o empenho que Okonkwo havia dedicado à manutenção daquele estado de coisas, daquele estatuto de regência da tribo e de suas relações sociais, tudo aquilo que ele lutara para preservar estava sendo minado em sua base e em suas ramificações, da infiltração religiosa até o confronto aberto. Era tanto um sacrilégio do ponto de vista das suas crenças como uma transformação que ele não parecia estar apto a aceitar.
Achebe conduz a narrativa para que ela, com seus numerosos afluentes, desemboque no clímax final, uma cena de puro drama e da mais alta expressividade literária: a explosão de Okonkwo e a apresentação de sua sina como o trajeto arquetípico a ser percorrido por seu povo. Num arroubo de fúria, confuso pelo espectro da destruição que se abatia sobre sua vida e de seu clã, Okonkwo mata um mensageiro que viera a Umuofia. Conhecendo-se condenado, assume sua mal fadada sina.
Como que para coroar a crueldade de todo esse processo e já tendo nos mostrado, ao longo de toda a trama, o lado ibo da história, Achebe apresenta a visão do colonizador europeu. Em poucas e precisas linhas, o escritor consegue mostrar como aquele drama que ele trata como central é, do ponto de vista da “civilização” que assomava sobre a África, pouco mais do que uma nota de rodapé. Numa passagem muito significativa, um dos líderes do contingente colonizador pensa sobre o livro que iria escrever sobre os incidentes de que fora testemunha (o texto a seguir contém spoilers):
“No livro que ele havia planejado escrever ele iria enfatizar aquele ponto. Conforme ele caminhava de volta à corte, ele pensou sobre aquele livro. Todo o dia ele conseguia algum novo material. A história desse homem, que havia matado um mensageiro e se enforcado seria uma interessante leitura. Poderia se escrever um capítulo inteiro sobre isso. Talvez não todo um capítulo, mas pelo menos um parágrafo razoável.”
Ou seja, todo o drama e a história de Okonkwo, Umuofia e dos ibo não seria, aos olhos do estrangeiro, nem mesmo suficiente ou digna de um capítulo. O título do livro que esse personagem pretende escrever só vem a confirmar a leitura profundamente silenciadora que Achebe quer contestar: A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger.
A tradução do trecho citado e do título do livro a ser escrito pelo personagem são de minha lavra, a partir da edição em inglês, Things fall apart. A edição brasileira é aquela cujas informações constam na barra lateral do site.
Um dos melhores livros que eu já li. Fiquei tão encantado com a história do homem que procura fugir da sombra (mal)dita do pai e que se vê à sombra dos colonizadores que até comprei uma edição da Norton comentada. Dois detalhes que valem a pena ser comentados: 1) Achebe foi criticado por ter usado o inglês, a língua do colonizador, para contar a história dos ibo. Contudo, ele mesmo defendia o fato alegando estar se apropriando de um elemento colonizante para contar tal história; e 2) o romance soa como uma tese ao Orientalismo, principalmente a um de seus maiores expoentes – embora eu não esteja certo se ele estava consciente disso -, Joseph Conrad – existe mesmo um artigo de Achebe criticando a percepção de Conrad sobre os africanos em “O Coração das Trevas”.
Existe mesmo esse ensaio, não me lembro o título, mas está naquela coletânea de ensaios publicada pela Companhia das Letras, ‘A educação de uma criança sob o protetorado britânico’.
O Achebe é muito bom mesmo, ele sabe criar dramas literariamente ou se apropriar literariamente dos dramas históricos. Me descobri um fã desse escritor recentemente.