O século XIX foi marcado pela expansão imperialista de alguns países da Europa rumo a novas terras para explorar e dilatar as fronteiras para suas próprias riquezas poderem ter espaço para crescerem. Desse processo, chamado por Eric Hobsbawm de “Era dos Impérios”, surgem as mais diversas imagens literárias, exploradas no livro Cultura e imperialismo, de autoria de Edward Said. São imagens de exploradores destemidos, povos exóticos com culturas exóticas em terras “bárbaras”, em que os europeus, sob cujos ombros pesa o polêmico “fardo do homem branco”, têm, supostamente, a missão divina e cavalheiresca de trazer ao bojo da civilização. Mas a que preço?

Esse processo foi acompanhado por massacres, privações, explorações, injustiças etc. Da fertilidade que esse terreno apresentou aos escritores, talvez seja o romance de Joseph Conrad, Coração das trevas, o mais contundente e visceral deles. Houveram outras visões acerca dos novos povos, das navegações, do choque de culturas e das tensas relações dos imperialistas e dos povos que por suas mãos viriam a morrer ou ser escravizados, como as histórias de Henry Rider Haggard, das quais a mais conhecida é As minas do Rei Salomão; ou do Nobel de Literatura de 1907, Rudyard Kipling (Kim, O livro da selva etc.)

A “literatura marítima” já tinha certo renome e gozava de um público ávido por conhecer novas aventuras e peripécias de marinheiros valentes e destemidos, ainda mais em tempos de navegação, exploração e glórias. Essa expectativa pode explicar em parte porque o romance de Conrad enfrentou certa recusa ou estranhamento quando da sua publicação, em 1902.

Coração das trevas é uma história dentro de uma história, onde Marlow nos narra a história de uma viagem sua, em que ele sobe o Rio Congo em busca de um caçador de marfim, Kurtz, ao redor de quem existe uma aura de mistério tão magnética quanto assustadora. Entranhado no coração da África, Kurtz parece ter sido influenciado pelo exotismo e pela estranheza que o local causa em alguém “civilizado” ou não acostumado a um modo de vida tão distinto como aquele, na fronteira que separa o “nós” do “eles”.

Marlow vai subindo o rio de maneira serena, porém encontrando toda a sorte de eventos perturbadores em seu caminho, como que encaminhando-se vagarosa e inadvertidamente para uma emboscada ardilosamente arquitetada. Parece haver no caudal do rio mais do que água, parece haver uma força geradora de tensão, que espreita a cada instante, das trevas das florestas que margeiam o rio até as beiras das aldeias, observando tanto o experiente Marlow como o angustiado leitor, que segue temeroso o rastro do barco do marinheiro.

O rio não conduz apenas ao coração da África, ele conduz ao coração das trevas, de modo que se intercalam na narrativa, com uma força arrebatadora, uma viagem marítima e uma jornada introspectiva ao âmago da alma humana, onde reside uma força incontrolável e estarrecedora, cuja sedução é tão forte quanto assombrosa. Somos jogados na boca da fera assim como Marlow parece estar sendo, encaminhando-se lentamente para um desfecho imprevisível.

A sensação que Conrad causa ao leitor é de um mergulho num lamaçal, que o desequilibra e o faz querer saber mais sobre a história na mesma medida em que deseja sair do clima sufocante do livro. A jornada de Marlow transcende a “simples” viagem a um continente ainda envolto em uma bruma de mistério para os europeus da época, é algo mais grandioso porém não menos cruel, que extrapola a materialidade e entra no domínio do espírito, das sensações.

Coração das trevas nos leva a refletir até que ponto o Imperialismo foi uma missão civilizatória e até que ponto os seres humanos podem permanecer sãos. Do Tâmisa até o Congo, Marlow viaja tão longe quanto o leitor, que experimenta sensações extremas, que por mais seguras que sejam da poltrona da sala ou das cadeiras da biblioteca, causam arrepios na espinha pela iminência de tragédia a cada página.

Creio que Conrad deve ter passado maus bocados tentando fazer Kurtz corresponder a toda a propaganda que dele foi feita ao longo da jornada. A cada linha escrita a respeito da Kurtz parecemos sentir o olhar dele perscrutando nossa alma, desnuda e vulnerável, enquanto ele, aparentemente ensandecido, está muito mais bem adaptado, calejado, primitivo o suficiente para sobreviver naquele ambiente mórbido e sufocante.

No “reino” de Kurtz não há lugar para a razão, ao menos não aos moldes europeus, ditos “civilizados”; mas sim uma simbiose místico-espiritual, que emana dele com uma força arrebatadora, tão fascinante e ao mesmo tempo tão desconcertante. Quando Marlon Brando (que encarnou Kurtz no cinema em Apocalypse Now) dirige aquele olhar à tela e nos sentimos quase compelidos a desviar o olhar, por não aguentar retribuí-lo de igual para igual, bem, aquela é a sensação que Conrad nos faz passar ao longo do romance.

Coração das trevas causa confusão quanto às interpretações, já que em sua riqueza (e creio que ambiguidade proposital) há espaço para interpretações que vão desde a crítica ao colonialismo até introspecções psicológicas profundas. As trevas seriam os desmandos dos “civilizados”? A “barbárie”? Os demônios interiores que habitam nosso ser? A linha que separa a sanidade da insanidade? O terreno desconhecido que temos em nosso ser e que tanto nos assombra?

Não creio serem essas duas hipóteses negações uma da outra ou mesmo interpretações definitivas (ó sublime subjetividade!), mas sim facetas diferentes de um mesmo conflito, que dá lastro suficiente tanto para uma quanto para a outra.

Nenhuma resenha de Coração das trevas pode deixar de falar sobre as últimas palavras de Kurtz em seu leito de morte. “O horror! O horror!”, não são muitas as frases que causam tamanho e tão avassalador efeito apesar de sua brevidade. Tão simples e tão complexa, o réquiem perfeito para coroar o desfecho de uma obra-prima da literatura.