IV.

Estamos navegando e, assim que aportamos nos Novos Cantos, temos a impressão de estar em terra firme. Mesmo o sentimento de certo modo líquido que tínhamos no inferno poundiano dos 30 cantos anteriores se relativiza, e já não nos deparamos tão frequentemente com cartazes de bar (XXII), livros de conselho (XXVI), personalidades como Maria Curie (XXVII).

Óleos, animais, ervas, petrificações, pássaros, incrustações, / A conversa do Dr. Mitchell era variada…”, nos diz o começo do Canto XXXIV, exatamente o primeiro a nos apresentar um ideograma chinês ao longo do livro (o Dr. Mitchell é Samuel L. Mitchill, um médico, naturalista e político novaiorquino do século XIX reconhecido por suas excentricidades e por suas conversas empolgadamente em voz alta sobre coisas que o empolgavam).

O significado dos ideogramas, que em muitos casos é apenas uma reiteração do que já foi dito (num exemplo aleatório, o ideograma “árvore” numa passagem sobre árvores), pode ser também visto como uma forma de se condensar, mais radical e brutalmente, a Cultura Humana ao longo dos séculos, num processo em tudo condizente com a perspectiva epicizante e universal dOs Cantos (mesmo porque, basta lembrar que começamos numa tradução renascentista da Odisseia, certo?). Por exemplo, poucas páginas depois encontramos um poema que dialoga lucidamente com a tradição das Baladas italianas: é o Canto XXXVI, um dos mais belos do livro:

 

Pede-me uma dama

                        Falar na hora azada

            Procura ela razão para um afeto, muitas vezes fero

            Que é tão soberbo em se chamar Amor

 

Outras passagens são belas desse florilégio, como o Canto XXXIX. Mas bela mesma é a próxima coletânea, A Quinta Década dos Cantos.

Nesta, temos o Canto XLV, reconhecidamente uma das partes mais belas do livro (mesmo para os haters de Pound), que trata da relação da usura com as coisas simples da vida, as coisas que realmente valem a pena. Como diria Paulo Leminski, as coisas “in-úteis”, coisas que não precisam de uma utilidade prática para que as coloquemos no mais alto escalão das coisas importantes da vida. Como um Sábado de Sol, um abraço, um bom poema.

(Existem estratos de sentido mais profundos sobre esse canto, como a da própria terminologia da palavra “usura”, as referências internas, a correlação com Dante, a técnica de construção antitética e polarizante, entre outros. Deixo aqui o apontamento para o leitor que desejar se embrenhar mais nesses magníficos versos.)

Temos também o Canto XLVII (“Lâmpadas apinhadas na enseada / E, colheando-as, a garra do mar.” [a imagem das lâmpadas será frequentemente usada daqui pra frente, podendo ser correlacionada à chuva, ou à natureza, ou à cidade, ou ao moderno]), o Canto XLIX, em que vemos uma aproximação praticamente definitiva do domínio imagético oriental (“Os juncais, encharcados; arqueados; / e falam os bambus em tom de choro.”). É muito provavelmente uma das partes do livro com mais passagens memoráveis per capita.

V.

O caminho já está traçado para uma entrada definitiva no Universo Oriental. A próxima sessão, entitulada apenas “Cantos” (e que talvez seja o microcosmo do livro todo), possui 20 poemas e inicia com uma nota introdutória acerca dos ideogramas ali representados. Mas o leitor não precisa ficar muito desesperado pois nem Pound era um ás em língua chinesa. Muito de seu conhecimento advinha do que foi deixado por Ernest Fenollosa, um orientalista erudito que influenciou muito no pensamento poundiano sobre a tradução e sobre a linguagem ideogramática (mas que hoje se encontra certo modo superado).

Pra não deixar passar em branco, vamos citar um trecho do ABC da Literatura em que ele comenta o ensaio de Fenollosa sobre o ideograma chinês:

(…) [Fenollosa] estava tentando explicar o ideograma chinês como um meio de transmissão e registro do pensamento. (…) mas os chineses usam figuras abreviadas COMO figuras, isto é, o ideograma chinês não tenta ser a imagem de um som ou um signo escrito que relembre o som, mas é ainda o desenho de uma coisa; de uma coisa em uma dada posição ou relação, ou de uma combinação de coisas. O ideograma significa a coisa, ou a ação ou situação ou qualidade, pertinentes às diversas coisas que ele configura.” (trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes, Cultrix, 1995)

Pois bem, bão-balão, muitas passagens bonitas, muitas, muitas, pra começar pela linguagem sapiencial que atravessa o Canto LII todo:

Ofereci aos deuses do lar

                        os pulmões das vítimas

            Tépido o vento está vindo, o grilo clama no muro

            O falcão novo aprende o seu ofício

                        o gramado morto gera pirilampos.

 

Narrativas de dinastia, que serão aprofundadas nos Cantos Pisanos, começam a aparecer no Canto LIII (“Yeou ensinou os homens a quebrar galhos / Seu Gin montou o palco e ensinou permutas” etc), ao lado de uma exacerbação profunda das citações de ideogramas (14 só no LIII).

Aí o leitor desespera, fica confuso, começa a perceber que não está entendendo o que diabos acontece (se bem que, qual é, a gente estava?).

Mas, e principalmente (vamos lá, ânimo!), deve ser também a hora dele tratar estas “inquietas sombras”, como diria Goethe, de um posto de vista eu diria fantasmático: a sensação de que assistimos a um cortejo de sombras é profunda nesse arco de poemas, é uma sensação que deve ser acompanhada de duas atitudes básicas: contemplação e/ou aprofundamento. E como minha resenha possui um teor introdutório, encorajador, é fundamental que olhemos com calma e parcimônia, com o coração aberto para o que nos é apresentado.

Por exemplo, o Canto LXXV é uma partitura musical. Mas isso não impede o fato de momentos da mais límpida poesia surgirem a nosso alcance:

Raízes baixam pela orla do rio

                        e a cidade escondida vai subindo

                                    marfim branco sob a casca

 

É do Canto LXXXIII. Um pouco acima, um trecho de extrema dor:

 

Nem pode quem passou um mês nas celas da morte

                        acreditar em pena capital

            Nenhum homem que passou um mês em celas da morte

                        acreditas nas jaulas para feras

Certamente advindo da experiência pessoal de Pound (preso em 1945), um trecho que narra com uma condolência gritante uma realidade atualíssima, se considerarmos que a pena de morte ou a infernalização do sistema carcerário é um desejo de uma boa parcela da população ainda hoje (esse trecho também nos leva à comparação, por exemplo, com o final do Canto XLVII, “que tem o dom da cura / que tem o domínio das feras”, ou do Canto XLIX, “A quarta; a dimensão do sossego. / E o domínio das feras.”)

 

VI.

Se passamos dOs Cantos Pisanos, desanimamos com o Canto LXXXV, com 104 ideogramas, e o Canto LXXXVI, com 37. Mas, tecnicamente, a coisa vai “diminuindo” (vamos deixando pra lá, entenda-se, os ideogramas já não nos dão náuseas), e inclusive é uma surpresa reencontrar metáforas queridas como esta do Canto XV:

E agora levam luzes água abaixo

            flutuam lâmpadas de remadores

                        a garra do mar arrastando-as além.

 

Ou a passagem espetacularmente linda que é a abertura do Canto XCII (“E deste Monte, soprada / semente / e que toda planta tenha sua semente”), mas isso até o começo do Canto XCIII avacalhar com imagens que parecem hieróglifos (e devem ser hieróglifos). Se bem que, um pouco mais para frente, encontramos o começo do Canto XCV, um dos meus preferidos:

 

AMOR, ido como raio,

                        durando 5000 anos.

            Cessará o cometa de mover-se

                        ou as grandes estrelas atadas num local!

E aí passamos para a próxima sessão, nesse chove-não-molha, denominada Trono de los Cantares, e encontramos, logo de cara, no pórtico (Canto XCVI), poesia maravilhosa (“e a onda encobriu-a, / massa escura de água imensa.”), ideogramas, citações em latim, em grego antigo.

A vaca foi pro brejo. O arco está completo, o conhecimento humano todo apinhado, o inconsciente coletivo transcrito.

O bote de Ra-Set move-se com o sol / ‘mas nosso trabalho de erigir luz’ disse Ocellus”, começa o Canto XCVIII. Ou o questionamento mais otimista com que Pound percorre o Canto XCIX, um dos mais belos do livro:

 

Rios e colinas dão cor ao ar,

                        vigor, tranquilidade, não uma bateria de regras.

                        (…)

            Mas viver como flores refletidas,

                                                como luar,

            livre de todas as possessões nos afetos

                                    porém, como diz Chu, egoísta.

                        (…)

            Libertar almas com papel queimado?

            Buda? divino?

                        (…)

            Esquece a marcação dos orçamentos

                        ou seja, você provavelmente nem sabe que

            Os burocratas existem no tempo. Você está lindamente

                                                                                    inconsciente.

 

A citação é longa, mas é muito esclarecedora. Se chegamos até aqui, somos presenteados com momentos como esse ou o Canto CVI (“És o olho de deus. / Luzem as colunas como cloisonné, / O céu em chumbo com os ramos de olmo.”). E começamos a desconfiar que o livro Os Cantos é, ele todo, um presente, com todos os trocadilhos plausíveis para o termo.

VII.

Por fim, entramos na última parte do livro, nos fragmentos que Pound deixou e que em tudo condizem com o caráter fragmentário da obra.

A casa que encontramos logo de chegada, no Canto CX, é uma casa calma, não mais a casa de boa pedra do Canto XLV. E é surpreendente ver como, depois do turbilhão de Cantos anteriores, resta a paz.

O poeta reconhece “Que o amor seja a causa do ódio, / algo está deformado”. Reconhece que “Através das 12 Casas do Céu / vendo o justo e o injusto, / provando o doce e a dor, / Pater Helios girando.” (Canto CXIII) No mesmo canto, “Que o corpo está dentro da alma – / o brilho ascendente e envolvente / a escuridão despedaçada, / o fragmento”.

É o grand finale. Resta-nos apenas contemplar que “Agora raia o sol sob o signo de Áries.” (Canto CXVI) Resta-nos a constatação de “Que perdi meu centro / lutando com o mundo” (Canto CXVII), até a hora em que ele confessa, no último Canto do livro, o CXX, que “Tentei escrever o PARAÍSO.