Para hoje temos quatro poemas de Mariana Marino, doutoranda em estudos literários na UFPR, integrante da grupa de escrita Membrana Literária e autora de Peito aberto até a garganta, a ser publicado pela Editora Urutau neste ano. Os três primeiros poemas são inéditos, cada um de uma parte de seu livro, e o quarto saiu na publicação coletiva Corja!, do ano passado.


Parte 1: os princípios da cicatriz

iv. antes de os ossos pesarem

daqui a cinco anos
pensou Maria
entre os braços longos
eu quero tudo o que eu quero
pés nas águas
pelos acobreados
uma bacia abaulada para lavar
corpo e copos
a intensidade invernal de quem espera
areia minúscula entre os mindinhos
pequenos tecidos para conter as tranças
jiboias tortas no alpendre
lodo fresco entre soleiras
o abandono da noite entre as
frestas

—amplitude da tristeza
em seu estágio final.


Parte 2: com sangue de Sêmele

iii.

as mulheres da minha família
adornam os ossos pesados
com tecidos finos
e cores plácidas
desde minha avó
elas dançam sutis nos coquetéis
e firmes nas noites de insônia
sem perder os brios
mesmo à luz da fivela do cinto
de homens e progenitores
mesmo quando são avisadas
em seu baile de formatura
que seus namorados engravidaram
as formandas loiras

nós, muito morenas.


Parte 3: etimologias dos nomes próprios

xi.

A vizinha da frente,
Cibele, apesar de não parecer Cibele,
uma noite subiu as escadas
gritou na soleira de minha porta
enquanto as crianças do apartamento ao lado
imitavam sons estridentes de locomotivas a vapor—
curioso notar esse som antiquíssimo nas bocas de
crianças que ainda balbuciam e fisgam o ar
denso de suas composições familiares

era o carro, trancando a vaga de outro
se descompunha em excessos de dedos
você não vê, me apontava, estou atrasada,
sua agitação me distanciava dos jogos de sons
a invadir o calcário frio dos andares
eu só me fazia pensar em desvendar os acordes
infantis daquela cena doméstica
a traçar os despenhadeiros e pontes
– equilíbrios estáticos – para a locomotiva

e a vizinha gritava
e os filhos da outra vizinha apitavam
Cibele destoava daquele momento
precioso, em que o trem sai da boca de uma criança
e por isso deve ser celebrado
como um som original que pulsa da laringe
de um endotélio infantil.


Os cabelos como cipó
trançados numa volúpia de vento
traziam o cheiro escuro
de terra funda lodosa
onde pousam mosquinhas arroxeadas
e gotas de maresia.

Não é verão
apesar do brilho dos fios
trespassados por uma pressa
em desalinho
um caracol a se desmanchar
nas fissuras da pele que arde
-não se sabe se por excesso de noites
ou se por falta de mar.