Penso que todos sempre ouvem histórias sobre o lugar de onde vieram, passadas pelos pais ou avós. Eu nasci em Witmarsum, uma cidade grande em território, mas pequena em moradores: são pouco mais de 3.600 habitantes. Uma típica cidade pequena do interior, daquelas de que ninguém nunca ouviu falar e sempre pede para repetir o nome seguido da pergunta: “isso realmente existe?”. Existe, e fica no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, escondida no meio das serras. Está entre as cidades em que nevou este ano, caso precisem de uma referência mais atual. Faz limite com os municípios de Salete, Vitor Meireles, José Boiteux, Taió e Donna Emma. Se vocês pesquisarem no Google Imagens, encontrarão fotos da casa em que minha mãe cresceu, um sítio que agora está à venda. Ela e meu pai também nasceram em Witmarsum. Eram vizinhos. Meus avós paternos e parte dos meus tios ainda moram lá.
Ao contrário da impressão que tenho, nunca me contaram histórias sobre Witmarsum, muito menos sobre as cidades em volta. Não sei se é pela falta de ter o que contar, ou porque somos uma família pouco comunicativa – tenho a impressão de que, na verdade, eu é que não falo muito com todo mundo, sendo sempre a última a saber de todas as fofocas familiares, isso quando fico sabendo. Depois da leitura de O vale do fim do mundo, vi que essa é uma característica daquela região, povoada por imigrantes alemães que foram para lá fugindo das duas grandes guerras mundiais. Esses são os primeiros colonos do Alto Vale, aqueles que trouxeram seus costumes da Europa e os misturaram com os dos índios botocudos e demais brasileiros quando chegaram aqui. E sumiram do mundo, onde ninguém mais ouviu falar deles, apenas os que se embrenharam mata adentro em Santa Catarina em busca de nada.
“O colono de Santa Catarina espera que seus feitos heroicos sejam transformados em épico, e provavelmente espera em vão”, escreveu Sándor Lénárd, médico, escritor, tradutor e pensador húngaro que chegou ao Brasil em 1952 e viveu até 1972 naquele vale. A maior parte desses anos ele esteve em Donna Emma, cidade por onde sempre passo a caminho de Witmarsum. O vale do fim do mundo foi publicado por Alexander (como o conheciam) em 1967 e só agora foi traduzido para o português por Paulo Schiller. No livro, Lénárd apresenta um panorama da sociedade, dos costumes, da política e do cotidiano dessa pequena cidade durante os anos 1950 e 1960. Trata-se de um volume repleto de histórias locais ouvidas pelo médico e vividas por ele na desconhecida Donna Irma (como ele chama a cidade). Até a publicação desse livro, no mês passado, não fazia ideia de que o homem que traduziu Winnie the Pooh para o latim (um bestseller da época) viveu tão perto assim de onde nasci.
“A humanidade decidiu que conhece apenas o que está escrito – e sobre essas vidas nada passou ao papel”, diz Lénárd, expressando o quão desconhecida aquela região era até para ele mesmo. A preocupação dos colonos não era deixar um legado ou espalhar sua cultura, mas sim sobreviver em harmonia com a abundante natureza do lugar – que pode ser vista ainda hoje, nas serras altas que vez ou outra revelam uma queda d’água fina nos dias em que pouco chove, nas árvores antigas que resistem no meio dos pastos, nos gambás cruzando a estrada, nos bugios gritando nas matas. Coube ao médico, um dos grandes nomes do humanismo europeu, registrar a vida do colono catarinense e repassá-la adiante.
Enquanto lia O vale do fim do mundo, fui tentando combinar o que ele relatava com aquilo que eu já sabia sobre o local em que nasci, pois a vida de Donna Irma é repartida também pelos witmarsuenses. E mesmo lendo esse livro anos depois de ele ter sido publicado, depois de tantos avanços tecnológicos e sociais, ainda há características que persistem. Como a rotina tranquila, porém árdua, do colono. Ele levanta às cinco e meia da manhã para ordenhar as vacas, depois alimenta as galinhas, faz o café da manhã, vai para a roça, passa o dia colhendo fumo, ou milho, ou feijão, ou arroz, capina, volta para tirar leite de novo, faz uma janta farta e se recolhe para recomeçar tudo no dia seguinte. Meus avós fizeram isso, meus pais também, e até eu, nas férias, experimentei um pouco dessa rotina.
As pessoas ainda cultivam as crenças populares nas receitas caseiras para curar doenças, se agarram à religiosidade, insistem em desconfiar da medicina. A sabedoria colona pode parecer ingênua para quem vem de fora, e muitas vezes é, porém também guarda grandes preciosidades que são enxergadas por Lénárd. A experiência de perceber esses detalhes em um livro, uma história sobre o lugar de onde vim e que antes nunca tinha visto representada em nenhum tipo de arte, enriqueceu toda a leitura da obra de Lénárd. Lia quase que agradecida por ele ter registrado todas essas coisas – em palavras e em desenhos que enfeitam a edição e mostram os morros, os pastos e as casinhas de madeira que ainda estão de pé.
Logo no início do livro, Sándor Lénárd esboça uma espécie de evolução do imigrante em Santa Catarina. Ele chega sem nada, se embrenha na floresta para sobreviver com o que ela fornece. A próxima geração de colonos, com a terra herdada, a faz prosperar ainda mais. E a que vem em seguida já começa a ter contato com a cidade grande, com a civilização, com o modo de vida burguês. “Na cidade ele poderia ter uma escrivaninha – mas quem escreveria a história do avô? Cada um conta a própria história.” Lénárd bate várias vezes na tecla de que o colono acaba ignorando o próprio legado histórico. A sua simplicidade é tão extrema que ele pensa que não há quem se interesse em ler sobre a vida pacata de um povo que sobrevive do plantio e dos seus animais.
O colono de Santa Catarina não é diferente de outras pessoas responsáveis pela própria sorte, que trabalham com as mãos; talvez conheça melhor os animais, as variações do clima, as sombras das árvores que mostram as horas, e menos o que fica para além da cerca, do vale. É infinitamente desconfiado, porque o homem da cidade, o funcionário, o negociante de porcos e o fabricante de tapioca não deram mostras de grande boa vontade com ele. O médico e o farmacêutico enriqueceram às custas de sua ignorância.
Essa desconfiança do colono com o que vem de fora atingiu o próprio autor, que além de estrangeiro em terra de seus descendentes, ainda por cima era médico, possuía um conhecimento que, na experiência deles, poderia ser usada para tirar vantagem. Mas o que Lénárd em diversas passagens revela é como ele foi conseguindo conquistar a confiança dessas pessoas, deixando-as livres com seus remédios milagrosos, ouvindo suas ideias malucas e antigas sobre curas e sobre o homem, e muitas vezes surpreendendo-se com a sua lógica. Lénárd não impõe seu vasto conhecimento sobre o que o colono conhece, ele o escuta e aprende com sua simplicidade. Para Lénárd, Donna Irma é um lugar intacto, que ainda não passou pelas grandes mudanças e ambições que cidades maiores vivenciaram – e seus moradores nem se interessam por elas.
E assim ele mostra ao leitor como é viver no Alto Vale do Itajaí, conta seus causos – trágicos e cômicos –, se utiliza deles como exemplos para mostrar aquilo que os próprios colonos não mostram, sua história e sua origem, seu comportamento e visão de mundo. É incrível ver como várias dessas coisas persistem ainda hoje, foram repassadas de pai para filho não em forma de contos curiosos, mas como verdades sobre a vida. E não precisamos saber de onde elas vieram; para o colono essas são verdades absolutas que ele aceita sem questionar, mas ao mesmo tempo não se deixa enganar por aquilo que parece desafiar sua natureza.
Os colonos silenciam muitas coisas. Não são personagens de romance que conversam uns com os outros interminavelmente, nem pensam no que diriam se alguém distante estivesse próximo. Silenciam porque durante a aragem é difícil conversar. Silenciam porque já disseram tudo, porque com seu parco vocabulário convém economizar. E quando silenciam, as feridas da alma cicatrizam.
Talvez seja por isso que eu nunca tenha ouvido muitas histórias dessas cidades. Nós sabemos o básico sobre a região – quem veio, de onde veio, em que ano veio –, mas não conhecemos a fundo os motivos, as dificuldades, os detalhes sobre aqueles que vivem em Donna Emma, Witmarsum, Vitor Meireles, etc. Não sabemos, principalmente, o que essas pessoas pensam sobre a vida, sobre como elas aguentam jornadas longas de trabalho, a falta de recursos, de uma vida artística, dos luxos das cidades grandes, e como não sentem vontade de trocar isso por mais conforto. Sándor Lénárd, ao colocar no papel uma visão apaixonada pelos moradores e pela tranquilidade do lugar, desperta saudades naqueles que já conhecem “o fim do mundo” catarinense. E para quem ainda não o visitou, é capaz de causar uma vontade grande de passar um tempo observando os detalhes que ele registrou desse lugar.
O texto ficou muito bonito. Não cresci na roça, mas meus avós maternos são de uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. É interessante que a cidade e a casa dos meus avós me trazem uma ideia de um tédio avassalador (não volto lá há quase uma década), mas também despertam diversas memórias afetivas.
A foto que ilustra o post foi tirada de onde?
Por curiosidade, como é normalmente pronunciado “José Boiteux” pelos moradores dos arredores? É o tipo de nome que eu associo com um profundo assombro de conhecimento, quando se entende como se escreve aquele nome que há muito se ouve.
Obrigada, Rodrigo!
Diferente de ti, a imagem que essa região me passa é de tranquilidade. Quando as coisas estão meio estressantes, sempre penso que seria bom estar lá para descansar um pouco naquele clima bom (principalmente na época em que tem fumo na estufa, fica um cheirinho bom no ar ehheeh)
E não sei de onde veio essa foto, é coisa do editor xD
Não lembro direito agora, mas acho que a pronúncia é “boatê” hehehee
Pena, achei que a foto fosse do livro.
Caso tu não conheça, te indico o filme “Histórias que só existem quando lembradas”, e ao menos a quarta seção do livro “Vertigem”, do Sebald. Nessa seção, ele narra uma viagem à aldeia no Ällgau em que ele nasceu e cresceu.
Ah, e tem esse post muito bom sobre o Sándor Lenárd no blog da Cosac, lá tem alguns desenhos que ele fez 🙂
http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?p=14583
Me lembrou Walachai, aquele documentário que me deixou um mês com vontade de comer cuca. Eu entendi que deveria haver uma “limpeza” da diretora, mas ainda assim me chamou atenção o como as pessoas não queriam sair dali, daquilo que para mim era o fim do mundo.
Momento jabá: tem crítica minha pro documentário ali na aba de cinema 🙂
CUCA! \o/
Sdds dessa iguaria.
Se não me engano li a tua resenha de Walachai (e disse que iria assistir, promessa que não cumpri huhuhu) Mas ainda verei, juro >.<
Bela resenha, Taize.
Cresci em Gaspar e tinha parentes em Vítor Meireles. Aquele continua sendo o lugar de onde eu gostaria de nunca ter saído, justamente por estar tão no fim do mundo e distante dos ruídos da cidade. Lendo sua resenha, relembrei de como foi ter crescido em meio à mata quase virgem e numa pequena comunidade. Me fez lembrar também dos livros do Érico Veríssimo da série o Tempo e o Vento e de um filme nacional que assisti recentemente, A Casa de Areia. Embora sejam sobre diferentes localidades brasileiras, remetem aos fins do mundo onde não pedimos para entrar e que acabam se transformando em nosso verdadeiro lar.
Gostaria de saber mais sobre autores catarinenses, parece existir tão poucos!
Obrigada, Elena!
Também tenho muita saudade de lá, inclusive o objetivo da vida (aposentadoria) é voltar para a terrinha, ou pelo menos ter uma casinha lá para poder visitar quando der hehehehe
Também não conheço muitos autores catarinenses, pelo menos nessa região onde cresci a vida literária não era muito movimentada. Mas agora temos o “homem dos links literários no twitter e escritor” Carlos Henrique Schroeder para fazer a gente conhecer coisas novas. Se não conhece, dá uma procurada. ^^
Parabéns Taize Odelli,
a tua resenha está maravilhosa, você conseguiu sintetizar muito bem esse livro fantástico.
Acabei de ler o livro e jamais imaginei que alguém que viveu naquela região faria tão belo registro do cotidiano de tantas pessoas que viveram naquela região.
Eu sou filho de um menonita que veio da Criméia e participou da fundação do que é hoje o município de Witmarsun – SC – Brasil.
A Witmarsun original é na Holanda, a cidade onde nasceu Meno Simon, o padre católico, contemporâneo de Lutero, que criou um novo segmento no cristianismo por volta de 1520. Sempre que migram os menonitas criam colônias com o nome de Witmarsun. Alguns que sairam de SC de SC criaram outra Witmarsun em Palmeira – PR, entre Curitiba e Ponta Grossa.
Quero também agradecer ao Carlos Henrique Schroeder , que voce cita acima, a indicação desse livro no site “Antigamente em Blumenau”.
A leitura do livro é muito agradável, leve, por vezes divertida e outras vezes profunda.
Obrigado e uma grande abraço para voce.
Valter Hiebert
Oi, Valter!
Muito obrigada pelo seu comentário e pela leitura da resenha! Que bom que você gostou!
E que demais você ser filho de alguém que participou da fundação da cidade! Meu Witmarsum Pride deu pulinhos de alegria!
😀