Em tempos de coronavírus, comecei a estudar francês (por “começar” entenda “retomar” – terminei o básico há anos; por “estudar” entenda “20 minutos diários de Duolingo”; por “francês”, entenda “francês” mesmo). E no meio dessa gamificação linguística, eu me deparo com uma palavra cotidiana que desencadeou toda uma rede de significados para um livro que li em fevereiro e é, com certeza, uma das melhores leituras do ano: Os anos, da Annie Ernaux.
O que você pensa quando aparece a palavra jornada? Para mim, a palavra sempre teve algo de grandioso e transformador. A jornada do herói é aquilo pelo qual se passa para se tornar o que é. O Caldas Aulete, porém, quebra um pouco dessa imagem. Para o dicionário, jornada é: “1. uma viagem por terra; 2. distância percorrida por um dia de viagem; 3. dia de trabalho; 4. ação militar; 5. cena cantada diante do presépio; 6. peças encenadas no antigo teatro espanhol e português”. Nada de grandioso.
O Dicionário etimológico de Celso Cunha nos informa que a palavra jornada vem do latim diurnum – de onde também vem nosso “diurno”, por exemplo. E é assim que chegamos na dita cuja palavra do Duolingo: journée, que tanto lembra nossa jornada, é “dia” em francês.
Perdida entre dias e jornadas, foi impossível não lembrar de Os anos, de Ernaux. Publicado em 2008, o romance narra as mudanças vividas pela sociedade francesa após a Segunda Guerra Mundial. Mudanças marcadas pela política, pela economia e por escolhas sociais que chegam até os dias de hoje (ou, ao menos, aos dias anteriores ao coronavírus).
Uma sinopse assim poderia fazer parecer que o livro se assemelha mais a um tijolo, mas não é o caso – a obra tem apenas 228 páginas. Ernaux adota um personagem misto entre coletivo (a família se encontra, a família viaja… sem que os membros da família sejam distintos entre si) e tipos (o marido faz x, a esposa faz y). Ninguém é um personagem aprofundado ou mesmo distinguível – a família é nenhuma e todas ao mesmo tempo.
A narrativa começa com um almoço de domingo, uma fartura no meio de tempos difíceis, em que tudo que se faz ao redor da mesa é lembrar dos difíceis tempos de guerra, com saudosismo pelos que não estão mais ali e homenagem aos que estão. O tempo segue, a economia se recupera, chegam os novos presidentes, os bens de consumo novos. E se a guerra era assunto principal, torna-se o secundário – e depois das mortes dos membros mais velhos, torna-se um assunto tangencial até sair de vez da mesa. Os tempos mudaram, como diria minha vó.
Agora o assunto é quem entrou na faculdade (de engenharia), as viagens, as casas, os filhos, os netos. A mesa cada vez mais cheia, as pessoas cada vez com roupas mais novas e mais cheirosas. O almoço que precisa ser rápido porque um dos filhos tem que viajar logo mais.
As pessoas acreditavam ter uma vida cada vez melhor graças as coisas que tinham. De acordo com as possibilidades de cada um, trocavam o forno a carvão por um fogão a gás, a mesa de madeira forrada com uma toalha protetora por uma com tampo de fórmica, o carro de potência de quatro cavalos por um Dauphine, substituíram um barbeador mecânico e um ferro de passar por seus equivalentes elétricos, os utensílios de metal pelos mesmos de plástico.
E assim, em um mundo com cada vez mais coisas (e importante ressaltar aqui que as coisas não deixam de estar no mundo só porque não fazem mais parte das nossas vidas), passam-se eleições (algumas mais polarizadoras que outras), atentados, guerras, manifestações, nascimentos, casamentos, mortes. Além disso, ela tenta ressaltar o quanto esses dois mundos, o público e o privado, estão entrelaçados: o consumo exacerbado faz parte de um sistema social, econômico e político; opções políticas vão ter impacto nas relações pessoais, como casos amorosos, ter ou não filhos, visitar a família aos fins de semana.
Apesar de não ter um argumento explicitamente ecológico, não consegui não ver essa como uma das principais críticas do livro. “As pessoas não se perguntavam sobre a utilidade de cada objeto, simplesmente desejavam ter as coisas e sofriam por não ganhar o bastante para poder comprar tudo à vista”, narra a autora. A mudança que ela narra é de um mundo cada vez mais soterrado de coisas e esvaziado de relações e conexões.
A narrativa dos anos que se passam nos deixa com um gosto amargo de tragédias anunciadas. Todos os aspectos da vida parecem desmoronar. As relações são mais superficiais e as pessoas se sentem sozinhas. As pessoas compram sem saber o porquê. Acumulam coisas ao seu redor. O tempo passa mais rápido. A política fica mais extrema e confusa. As pessoas ficam mais irritadas.
É fácil olhar para a Segunda Guerra Mundial e ver que isso foi uma tragédia, assim como vários outros acontecimentos de grande porte. E é fácil olhar para o nosso dia a dia e vê-lo como normal, como neutro. No entanto, o que Ernaux faz é mostrar a jornada do cotidiano e o quão trágica ela também é. Mais que isso: mostra como os dias também fazem parte de algo muito maior.
FICHA TÉCNICA
Livro: Os anos
Autor: Annie Ernaux
Tradutora: Marília Garcia
Editora: Três Estrelas
Páginas: 228
Gisele Eberspächer é jornalista e tradutora. Vive entre livros e não sabe se gosta mais de café ou chá – então toma os dois compulsivamente. Fala sobre literatura no canal do YouTube “Vamos falar sobre livros?” desde 2012.
que beleza de texto — sucinto, pessoal, próximo.