por Nathan Matos

Atualmente, a crítica literária brasileira tem atuado de maneira falha. Dizemos falha porque o que percebemos é que há um grande boom de novos autores e, muitas vezes, esse boom se dá de acordo com a vontade de editoras e de festivais literários. Dessa forma, a preocupação dos críticos, principalmente brasileiros, se concentra em falar de novos autores e “esquecer” dos antigos, voltando a eles apenas quando necessário para realizar uma comparação com o novo escritor, ajudando-o, de certa forma, a criar a sua reputação.

Mas isso não deve ser o foco deste texto. Queremos ir de encontro a essa nova crítica literária. Desejamos, a partir da reflexão que será realizada, entender por quais motivos alguns poetas ficaram à margem da crítica literária brasileira, mas que podem ser equiparados a outros grandes escritores que se encontram no panteão nacional.

Entre esses, os mais descreditados de nossa literatura foram os poetas simbolistas. E isso talvez tenha ocorrido porque, de acordo com alguns críticos e poetas, o simbolismo no Brasil não aconteceu.

Paulo Leminski, em Cruz e Souza: o negro e o branco, afirma: “A principal característica do simbolismo brasileiro é que ele não houve” (2003, p.58). Se o simbolismo brasileiro, de fato, não existiu, mesmo que haja livros que provem o contrário, como o livro de Andrade Muricy, Panorama do simbolismo brasileiro (1952), que é um compêndio de poetas que seguiram as características da escola simbolista, só poderemos constatar que há algo errado.

Houve ainda quem dissesse que o “Simbolismo não foi, entre nós, senão um Parnasianismo musical, tanto mais que a sua sintaxe, na maioria dos casos, conservou-se tradicional e que o hermetismo seria, na poesia brasileira, a contribuição das gerações modernistas” (Artigo O simbolismo no Brasil, não assinado, no Suplemento literário de O Estado de São Paulo, de 25.11.61). Se essa afirmação pode ser testada, com êxito, perante a obra dos mais conspícuos representantes da primeira geração simbolista, já não parece funcionar inteiramente com relação à segunda fase do movimento, e menos ainda quando se trata da poesia de Pedro Kilkerry.

Pontuamos Kilkerry, pois nos encontramo às vésperas de completar outro centenário em sua homenagem, sendo desta vez o de morte. Ele, que transitou entre as correntes simbolista, parnasiana e romântica, só veio ter sua poética publicada completamente quando Augusto de Campos, no centenário de seu nascimento, 1985, publicou a Revisão de Kilkerry. Assim como fizera com Joaquim de Sousa Andrade, Campos, entendendo a importância desses autores para o quadro de escritores brasileiros a serem estudados e reavivados na memória do leitor e da sociedade, realizou pesquisas que nos embeberam, ao que chamamos, a “poesia dos esquecidos”. Sobre o poeta, diz: “Kilkerry permanece, a meio caminho, desamparado, ‘um homem sem fortuna e um nome por fazer’” (1985, p.21).

Para entendermos o motivo pelo qual o poeta baiano, leitor de Baudelaire e Mallarmé, ficou fora do panteão literário nacional, devemos nos debruçar, mesmo que rapidamente, sobre sua poética e sobre seu tempo. O livro de Campos é o nosso ponto de partida para o estudo, uma vez que une toda a obra poética de Pedro Kilkerry e os textos críticos sobre sua poesia até 1985.

Partindo do pressuposto de que o Simbolismo brasileiro nada mais foi do que um “Parnasianismo musical”, acreditamos que analisar a linguagem de Pedro Kilkerry seja de suma importância. Sobre ela, Augusto de Campos comenta:

 

Sua poesia era sem redundâncias, de audaciosas crispações metafóricas e, ao mesmo tempo, de uma extraordinária funcionalidade verbal, numa época em que o ornamental predominava e os adjetivos vinham de cambulhada, num borbotão sonoro-sentimental que ameaçava deteriorar os melhores poemas. (CAMPOS, 1985, p.29)

 

Assim, a linguagem cultuada em sua época ainda era aquela que exaltava a perfeição da forma, sem se preocupar com o conteúdo, era a linguagem que formulava o tão conhecido “vaso grego”.

De acordo com Jackson de Figueiredo, os poemas dos poeta franceses lhe eram muito caros, e isso teria contribuído para que sua linguagem avançasse na elaboração de uma nova “invenção verbal”, como dirá Afonso Ávila, em O poeta e a consciência crítica:

 

Alphonsus de Guimaraes e Cruz e Sousa se inscreveram ostensivamente na órbita lírica mallarméana, embora tenham sido os quase desconhecidos Severiano de Rezende e Pedro Kilkerry os simbolistas brasileiros que mais avançaram no sentido da elaboração da linguagem nova e da invenção verbal. (1969, p.62)

 

Constata-se, dessa forma, que Afonso Ávila, em consonância com Figueiredo, acreditava que a elaboração da linguagem de Pedro Kilkerry partia de leituras que havia feito, principalmente, de Mallarmé.

Daí, podemos nos questionar, por que, ainda hoje, depois de tantos movimentos vanguardistas e de transformações na literatura brasileira, com o surgimento de tantas “linguagens diferentes”, Pedro Kilkerry ainda continua à margem do cânone brasileiro.

Em poemas, como “Horas Ígneas”, “Harpa Esquisita” e “É o Silêncio”, Campos pontua dizendo que

 

são obras em que o talento poético de Kilkerry se revela em sua absoluta maturidade. Dificilmente se encontrará, em todo o Simbolismo brasileiro, linguagem tão densa e essencial, e de tão gritante modernidade, como a desses poemas. (CAMPOS, 1985, p. 40)

 

Ainda, nessa perspectiva, procurando saber quais motivos haveriam afastado Kilkerry do cânone nacional, Domigo de Leers Guimaraens afirma que a grande dificuldade em se publicar era outro fator que contribuia para que a poética simbolista não reverberasse no gosto do leitor brasileiro, ao contrário dos parnasianos que tinham o “príncipe dos poetas” entre eles e a “linguagem perfeita” ao seu favor. Diz o crítico:

 

Com dificuldades para publicar seus textos em livros, os simbolistas que sempre estiveram muito ligados à imprensa, publicavam-nos em periódicos, mas longe dos grandes centros. O caso mais drástico foi o de Pedro Kilkerry que nunca chegou a organizar seus textos em volume. (GUIMARAENS, 2009)

 

Se o poeta tinha ou não intenção de publicá-los, não saberemos. Figueiredo, que foi companheiro de estudo de Kilkerry, conta que o poeta gostava de recitá-los e que muitas vezes perdia os poemas que criava, pois os anotava em qualquer pedaço de papel.

Confirmando o que Guimaraens afirmara, Augusto de Campos, quando pesquisando sobre o poeta baiano, constatou: “De fato, Kilkerry não tem obra editada. Alguns de seus poemas foram publicados em jornais e revistas da época – principalmente nas revistas simbolistas Nova Cruzada e Os Anais” (CAMPOS, 1985, p. 21).

Percebemos, assim, que a falta de publicação dos poemas simbolistas e a questão do estranhamento com sua linguagem por parte dos leitores possa ter contribuído para que Pedro Kilkerry e outros poetas, como Severiano de Rezende, tenham passado despercebidos pelos críticos nacionais, acabando por modificar a “cultura literária” da sociedade brasileira.

Porém, se analisarmos, brevemente, “Horas Ígneas”, poema dividido em quatro partes, apesar de notarmos o quão difícil pode ser a apreensão das ideias perpassadas pela poesia de Kilkerry, iremos constatar que o poeta possuía uma linguagem única entre os escritores brasileiros, como bem pontuou Campos, tendo, de acordo com seus estudiosos, sofrido influência fortíssima de Mallarmé. Aqui, apresentamos apenas a primeira parte do poema:

 

Eu sorvo o haxixe do estio…

E evolve um cheiro, bestial,

Ao solo quente, como o cio

De um chacal.

Distensas, rebrilham sobre

Um verdor, flamâncias de asa…

Circula um vapor de cobre

Os montes — de cinza e brasa.

Sombras de voz hei no ouvido

— De amores ruivos, protervos —

E anda no céu, sacudido,

Um pó vibrante de nervos.

O mar faz medo… que espanca

A redondez sensual

Da praia, como uma anca

De animal.

 

Podemos perceber, a partir do primeiro verso, que o eu-lírico estará sob efeitos do haxixe, que o fará, portanto, não possuir mais consistência em seus pensamentos. Essa disfunção será refletida na própria estrutura do poema, tendo em vista que o poema não apresenta uma continuidade no campo semântico das ideias.

A falta de lógica na sequência de ideias nos poemas kilkerryanos são recorrentes, afastando aquele leitor que prefere a linguagem “perfeita” e que facilmente cria imagens conhecidas para o entendimento do poema. Mas se observarmos bem, a estrutura desse poema segue a consequência do que é dito no primeiro verso, “eu sorvo o haxixe do estio”, diz.

O haxixe é o agente catalisador de uma inconsciência lógica, levada a cabo na estruturação do poema. As sombras, que aparecem no poema, são resultados do efeito da droga, criando um aspecto demoníaco, caráter outro presente na poética de Kilkerry. E nota-se, em seus versos, que há sim certa preocupação com a rima.

A sequência I, II, III e IV de “Horas Ígneas” não é feita de maneira que o poema possua uma forma fixa, como possuíam os parnasianos. São, de acordo com Bauduino Fernandes Ribeiro,

Marcações avulsas dos estágios do efeito da droga, ou divisão imprecisa de seus momentos, ou ainda a “narração” de quatro “Horas Ígneas”, as horas em que comumente dura o entorpecimento do haxixe. Se observarmos cuidadosamente, o texto não apresenta nenhum tom de relato, todos os tempos verbais se verificam no presente. É como se autor quisesse fundir o delírio e a lírica, como se esta guardasse em si o próprio espaço do devaneio.

E esse espaço do devaneio se faz presente com mais força em “É o silêncio” e “Harpa Esquisita”.

Assim, entendemos que um poeta da estatura de Pedro Kilkerry, que, além de transitar em várias “escolas”, que não seguia regra alguma e que criou uma nova elaboração na linguagem merecia, ao nosso entender, um lugar de lembrança na mente dos leitores brasileiros. Assim como Drummond, Gruimarães Rosa, Cabral de Melo Neto que criaram uma nova maneira de se expressar, quase única, o poeta baiano, Pedro Kilkerry criou a sua, de forma que o resultado da sua poesia só pudesse ser alcançado após muita reflexão.

Acreditamos que seriam esses motivos importantíssimos para que Pedro Kilkerry começasse a ser lembrado pelos leitores e principalmente pela crítica literária. Mas, sabemos que Pedro Kilkerry não é o único e não está só. Assim como o poeta baiano outros nomes estão à mercê desse sistema que investe fortemente em novos autores. Parece, que de certa forma, relegam o seu, o nosso, passado, deixando na poeira das prateleiras os poetas e suas sombras. 

REFERÊNCIAS

1. MURICY, Andrade  (1952). Panorama da  Poesia Simbolista Brasileira.  Rio  de Janeiro.
2. LEMINSKY, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 2003.
3. AVILA, Afonso. O poeta e a consciência crítica. Petrópolis: Vozes, 1969.
4. GUIMARAENS, Domingo de Leers. Caminhos imaginativos: do simbolismo ao modernismo e além. Abril de 2009. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Arquivo em pdf.
5. CAMPOS, Augusto de. ReVisão de Kilkerry. Editora Brasiliense, 1985.
6. RIBEIRO, Jiego Balduino Fernandes. Máquinas fantasmas na escritura: a modernidade em Pedro Kilkerry. Maio de 2010. 150 p. Dissertação. Universidade Federal do Espírito Santo. Arquivo em pdf.

Sobre o colaborador: Nathan Matos acordou tarde para os mundos, mas conseguiu se formar em Letras. Teima em escrever textos críticos. Edita as Revistas Pechisbeque e Substânsia e é criador do Site Literário LiteraturaBr.