Há um mistério que envolve Camille Claudel (1864-1943), a escultora do século XIX, aluna e amante de Auguste Rodin e irmã do escritor Paul Claudel. Autora de A Valsa (1892), As Fofoqueiras (~1900) e A Idade Madura (1894-2000, abaixo), Camille foi internada pela família em 10 de março de 1913, uma semana após a morte de seu pai (e maior protetor), por seus surtos esquizofrênicos e episódios depressivos, permanecendo internada por trinta anos, até sua morte, em 19 de outubro de 1943.

A Idade Madura (1894-2000)

Do rastro conturbado de sua vida permaneceram suas obras – mas não todas, já que muitas foram destruídas por ela durante os surtos – e, no Cinema, dois filmes que elevaram suas atrizes a níveis de impecável qualidade dramática, mantendo viva e tangível a memória dessa mulher que ainda hoje paira como um fantasma no mundo das artes.

Em 1988, Bruno Nuytten dirigiu Camille Claudel, com Isabella Adjani no papel título, Gerárd Depardieu como Rodin e Laurent Grévill como Paul Claudel. Nos moldes tradicionais de uma cinebiografia, o filme acompanha décadas da vida da artista, seu envolvimento com Rodin, o ápice de suas criações, até seu declínio emocional e completo desgaste mental.

A artista começou a trabalhar com Rodin por volta de 1885, auxiliando-o em obras magníficas, como Porta do Inferno (1880-1890). Envolveram-se romanticamente, e ela serviu de inspiração para muitas criações do mestre. Mas o artista recusava-se a abandonar a mulher, Rose, mesmo nunca tendo se casado oficialmente, e aos poucos Camille tornou-se neurótica e obsessiva. Dentre as tragédias dessa relação estiveram um aborto e os primeiros surtos emocionais de Camille, que posteriormente a levaram à completa loucura e cuja mania de perseguição a fez cozinhar a própria comida pelo resto da vida.

Nessa biografia de três horas de duração está retratada uma densa história de arte e sofrimento. Embora longe de ser fácil e se estender em demasia, com fragmentos entrecortados por uma edição excessiva, muitos pontos positivos devem ser ressaltados, entre eles o destaque à relação entre Camille e Paul, acompanhando o desenvolvimento artístico e moral do escritor, considerado por alguns como o principal responsável pela internação da irmã até o fim da vida.

Em dado momento, Paul chama a irmã de “um mistério em plena luz do dia”, que uso como subtítulo desse artigo. Pesaroso, ao decidir-se pela internação, Paul diz: “Ela nunca conseguiu nada. Todos os dons que a natureza lhe deu só lhe serviram de sofrimento” – e é essa voz do poeta um dos pontos de união entre o filme de 1988 e o de 2013, Camille Claudel, 1915, de Bruno Dumont, com Juliette Binoche igualmente brilhante.

O corte temporal na obra de Dumont é bem estabelecido: 1915, quando ela já estava há dois anos internada – ainda em Saint de Ville Evrard, antes de ser transferida para Montdevergues na época da Guerra –, mas ainda com esperanças de retomar a vida e a carreira.  Metida entre loucos, até os sons e o cenário a sua volta são enlouquecedores: gritos e gemidos por todo o dia, uma construção ampla, perdida em lugar ermo, cercada por montanhas de pedras escuras e cujas pedrinhas no chão estralam a cada passo 1. Assim, para tentar equilibrar sua mente Camille agarra-se à religião, a mesma que modificou tão completamente seu irmão ao se converter.

Na obra de 2013, Paul Claudel (um ótimo Jean-Luc Vincent) revela em sua austera e pacífica voz interior – que o diretor expõe à plateia – o discurso carola e conservador que tanto prejudicou a irmã. No filme de 1988, acompanhamos a formação de Paul, que quando jovem agradece Camille por ter lhe apresentado a obra de Rimbaud, o poeta maldito, mas em algum momento torna-se rígido e cheio de recalques.

Paul
Paul Claudel (1968-1955), poeta e diplomata; Laurent Grévill, no filme de 1988 e Jean-Luc Vincent, no filme de 2013.

Camille sempre foi um confronto, um escândalo à sociedade, inclusive por seu talento, que de tão inacreditável a fez ser acusada de roubar obras de Rodin e expor como suas (hoje as suspeitas são exatamente do oposto). Bruno Nuytten teve a sensibilidade para mostrar sua relação com Rodin como algo apaixonado e doentio, sendo Camille a aluna-amante que também é a parte mais frágil da corda que desde o princípio sabemos que vai arrebentar. No filme, Rodin ousa dizer “Você emana de mim. Nada é seu.” Camille é a derrotada, por Rodin, por Paul, por sua mãe e pela sociedade. Aqui há arte, amor e também misoginia.

Rodin, em bela interpretação do ex-francês Gerárd Depardieu, é um gênio e um fraco, e aí está uma das maiores coragens do diretor. No filme de Dumont, Rodin não aparece: em 1915 ele já estava ensimesmado, gozando da glória de seu Balzac (1898) e de outras obras, muitas delas auxiliadas ou inspiradas por Camille.

Em ambos os filmes, não há pressa para contar o drama de Camille, mas diferente das três horas de Nuytten, Dumont usa artifícios no enredo para fazer a trama se estender até a loucura. Somos mergulhados na prisão mental da protagonista, onde pouco ou nada acontece, onde não há novidades, onde na maior parte do tempo esperamos uma visita que não chega (Paul) e que, quando chega, não traz nada de novo. Somos sufocados pelo tédio, e isso pode doer em parte da audiência.

Ambos os filmes são como pedradas, como as esculturas de gesso que a Camille de Isabella quebra em um momento de fúria. Ambos os filmes contam uma vida de arte e muitas lágrimas. Ambos os filmes, contudo, têm a qualidade de fazer com que Camille seja lembrada, seja como louca, amante, artista, tudo isso, nada disso, não importa. Uma esfinge, que ainda tem muito a ser desvendado, e felizmente dois bons filmes como ponto de partida.

10
A espetacular Isabelle Adjani: linda e louca como Camille Claudel (1988): “Eu sempre ocupei muito espaço”.

http://www.youtube.com/watch?v=5DJQmCK6AJw

  1. pontuações levantadas por @bazzzoca, a quem dedico esse texto e que tem aprendido a ver filmes com olhar de cri-crítica