Tenho a impressão de que o romance contemporâneo, brasileiro ou estrangeiro, pouco olha para um universo que pode se provar bastante fértil quanto a boas histórias e personagens: o do jornalismo. Não que as tramas ignorem a figura do jornalista, pois este aparece aqui ou ali na maioria dos romances e contos. Mas o universo dessa profissão, repleta de dilemas espinhosos como a busca da objetividade e isenção (porque verdade quem busca é a filosofia), poderia ser muito melhor explorado pela ficção contemporânea. Exclusiva, primeiro romance de Annalena McAfee, foi lançado no Brasil ano passado. Comprei o livro durante a Flip daquele ano em grande parte devido à presença da autora, experiente jornalista que editou por anos o ótimo suplemento literário do diário britânico The Guardian. A trama de tom satírico também me atraiu, mas devo confessar que o livro ainda não foi lido.

Este Anatomia dos mártires é outro exemplo. Escrito pelo jornalista português João Tordo e publicado na terrinha em 2011, o romance desembarca agora no Brasil integrando a segunda fornada da coleção Novíssimos, da editora Leya, que visa apresentar o melhor da nova prosa portuguesa. O protagonista, cujo nome desconhecemos, é um jovem jornalista português que tem sua vida transformada após escrever um artigo sobre a biografia de um mártir americano escrita por um acadêmico também americano, Tom Kapus. No texto, ele compara o caso do mártir, que seguia uma religião alicerçada no silêncio e sempre pareceu ter um parafuso a menos, com o caso de Catarina Eufémia, camponesa da região do Alentejo morta pelos agentes da repressão do Estado Novo em 1954.

Aqui, cabe um pequeno parênteses para entendermos o que estava acontecendo em Portugal no ano de 1954 e de que forma isso afeta a trama dos dias atuais, que se passa em 2008, precisamente na época do estouro da crise econômica mundial deflagrada pela bolha imobiliária americana. Os portugueses derrubaram sua monarquia em 1910. Pois é, até o início do século XX os Orleans e Bragança mandavam e desmandavam por lá. A república instaurada, no entanto, não trouxe estabilidade nenhuma, desembocando num golpe militar em 1926. O ato permitiu a ascensão de um jovem professor da Universidade de Coimbra, António Salazar, que botou a casa (no caso, as contas de Portugal) em ordem como Ministro das Finanças e instituiu, em 1933, o Estado Novo – só não confunda com o Estado Novo brasileiro, instituído por Getúlio Vargas em 1937. Enquanto o nosso durou até 1945, o dos portugueses se estendeu até 1974, e foi muito mais sangrento. Durante 41 anos, Portugal viveu uma ditadura de direita, com um regime de partido único e um Estado que caçava comunistas. O Alentejo, região ao sul do país e fortemente agrária, era marcada pelos latifúndios e pelas revoltas camponesas. Diz-se inclusive que, no Alentejo, “o comunismo é algo cultural”. Catarina Eufémia, camponesa de apenas 26 anos e mãe de três filhos pequenos, foi assassinada em 1954 pela guarda estatal ao liderar uma revolta que pedia algo mais que os salários miseráveis pagos pelos cada vez mais ricos proprietários de terras da região. Imediatamente (como inclusive destaca Tordo durante o livro), Catarina foi alçada ao posto de mártir, tendo sua vida – ou melhor, pontos adequados dela – apropriada pelo Partido Comunista Português, ainda hoje um dos mais relevantes da política portuguesa. Cinquenta anos depois, a história (ou seria lenda?) de Catarina volta à cena com a publicação do polêmico artigo, cujo trecho mais incendiário segue abaixo:

Se o comunismo é a mãe das utopias políticas e a utopia é irrealizável nesta vida, então um bom comunista é um comunista morto. Será que o mesmo não se aplica aos mártires, ou a qualquer um que reivindique a encarnação de um ideal, por definição impossível de concretizar? Talvez a morte seja uma benesse para estes e outros mártires; talvez o melhor seja estarem mortos e irremediavelmente calados. (p. 58)

 

O romance de João Tordo sofre de uma certa falta de ritmo no início, mas, da mesma forma que a vida do protagonista dá uma guinada após a publicação do texto, a vida do leitor melhora, visto que a trama ganha em agilidade e retrata bem os dilemas e consequências que o jovem terá de enfrentar agora que mexeu com uma mártir intocável da história recente do país. Não raro, Tordo adota um tom misto de jornalismo e ensaio para narrar a saga do protagonista ao pesquisar, em diversas fontes históricas, a verdade por trás daquele 19 de maio de 1954 no qual uma jovem fora assassinada por desejar uma vida mais digna.

 

Em relação aos episódios remotos, a História tinha o caráter paradoxal de ficção, mergulhando qualquer episódio num espaço de meias-verdades e de meias mentiras que, se não tivéssemos cuidado, poderiam levar-nos ao ceticismo mais absoluto ou ao dogmatismo mais desenfreado. (p. 153)

 

Ao refletir sobre o poder exercido em nossas vidas pela política e pela religião, duas forças que, afinal, subjugam o indivíduo da mesma maneira, João Tordo se aproxima bastante de seu conterrâneo José Saramago. Ele ainda exprime o papel da memória em ressignificar o mundo que nos cerca e nossas experiências, criando uma história que traz em seu desfecho um acerto de contas não apenas histórico, mas essencialmente pessoal.

 

Dentro do táxi, enquanto um pequeno aguaceiro lambia o vidro da janela, pensava em como a memória, ou as recordações que vamos guardando do mundo ou daquilo que entendemos ser o mundo, é na realidade muito mais forte e verdadeira do que o próprio mundo e constantemente se substitui a este. (p. 114)

 

O humor é outro elemento que se destaca na narrativa de Tordo, especialmente a cena de um almoço de Natal reunindo o protagonista, seu pai em estágio de quase senilidade, um amigo empresário duramente afetado pela crise e uma ex-namorada não muito inteligente. O autor equilibra de forma satisfatória passagens mais leves com a obsessão do jornalista pela história de Catarina Eufémia, sem esquecer do clima de apreensão que rondava (e ainda ronda) Portugal, uma das nações mais afetadas pela recessão econômica dos últimos anos. Se a proposta da coleção Novíssimos é a de apresentar o melhor da prosa portuguesa contemporânea, Anatomia dos mártires se prova um ótimo exemplar do que os escritores da terrinha estão a produzir hoje.