Imre Kertész me colocou em uma baita cilada, arranjei um belo “problema” quando escolhi Liquidação em troca de uma resenha: nenhum parco texto de poucas linhas dará conta de exprimir com satisfação a angústia que o livro causa e todo o desespero consciente e dilacerante que impregna aquelas páginas, sem falar na originalidade da composição de enredo, que é fabulosamente concebida de modo a deixar o autor livre para transitar da realidade a literatura através de meta-considerações sobre a arte literária e a pesarosa experiência histórica que foi o holocausto no manancial de barbárie que deságua no lodaçal pós-moderno.

O autor húngaro de Liquidação foi agraciado com o Nobel de Literatura em 2002 pela “escrita que confirma a frágil experiência do indivíduo face à arbitrariedade bárbara da história”. As breves palavras justificativas da Academia Sueca confirmam as justificadas obsessões de Kertész por compreender a ressonância histórica do holocausto e do genocídio que tiveram como palco central o campo de concentração de Auschwitz.

É difícil compreender a abrangência de Liquidação, pois ao referir-se aos massacres nazistas, por mais que verse sobre a tragédia dos judeus, Kertész acaba fazendo-se porta-voz de todos os oprimidos, assassinados e engolidos pela logística do horror nazista que imperou na dieta macabra dos campos de concentração e seus desdobramentos a longo prazo, o peso histórico do horror sobre a noção de civilização e sua acabrunhante memória a nível individual.

O livro conta a história de Amargo (sim, esse é o nome dele mesmo, significativo, não?), editor de um escritor suicida, B., que deixou uma peça inacabada, Liquidação, em seu legado, sem, contudo, deixar um suposto romance que Amargo procura obstinadamente. Nessa peça, Amargo é um dos personagens, e juntamente com outros conhecidos de B., tenta encontrar algum indício da existência e da localização de tão precioso manuscrito.

Transcendendo as convenções dos romances policiais, Amargo penetra fundo no âmago da vida de um homem tão cheio de seqüelas como B. Sendo sobrevivente dos campos de concentração, nascido inclusive em um deles, B. é o representante das fantasmagorias passadas, que remontam ao holocausto, exprimindo o peso insustentável do passado na história e na vida cotidiana dos que carregam as cicatrizes e os traumas dos campos de concentração.

B., misterioso, excêntrico e dono de percepções infinitamente ricas em relação ao que representou o holocausto perante a história da humanidade, assume posições extremas e niilistas diante de sua vida, sobre a qual se estende a sombra da História, que marcou profundamente a humanidade, em especial nesse caso os judeus, os quais vêem-se presos em um mundo que parece ser indiferente ou desinteressado de conceder-lhes direito a memória ou a justiça. O signo da opressão e do sofrimento continua sobre as cabeças, pairando como ave agourenta que não cessa de lembrá-los dos horrores e da impossibilidade da ignorância e dos passos adiante.

Assim, B., que divide com seu editor sua angústia e sua descrença, vive um presente excruciante, marcado pelo flagelo espiritual constante e a incapacidade de tornar-se o mesmo novamente, pois ele é o que chama de “homem da era das catástrofes”, sem caráter, sem rumo, sem perspectiva. O presente é o único limbo em que pode habitar, pois o passado está marcado pelo sofrimento e revolta, enquanto o futuro pouco reserva, com memórias cerceadas e um sentimento de não-pertencimento que aumenta a cada dia.

E mesmo dessa condição enlouquecedora, de memórias assombradas pelo horror e um futuro de disformes contornos pós-modernos é que Kertész surge, empunhando uma pena e decidido a resistir a todo custo, por maior abnegação e impetuosidade que essa tarefa exija. Não a toa a orelha da edição da Companhia das Letras classifica Liquidação como um “ato de resistência”, é isso que o livro é: um esforço literário de vencer as ilusões aterrorizantes e fatalistas  da pós-modernidade enquanto reivindica memória e justiça diante dos esquecimentos da História. Fecho com as palavras que ilustram esse sentimento:

“O homem vive como um verme, mas escreve como se fosse para Deus. Houve um tempo em que se sabia desse segredo, hoje o esqueceram. O mundo é feito de cacos partidos, um caos escuro, sem nexo, sustentado apenas pela escrita. Se você tem idéia do mundo, se ainda não esqueceu tudo o que aconteceu, se chega a ter um mundo, ele foi criado pela escrita, e ela cria sem cessar a teia invisível que ata nossas vidas, o logos.” (KERTÉSZ, 2005, pp. 80-81)

KERTÉSZ, Imre. Liquidação. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.