Chega quase a ser engraçado como nossas impressões iniciais acerca, por exemplo, de um livro podem resultar no mais acachapante dos enganos. Não que eu tenha resolvido encarar Assim na terra com a impressão de que seria só mais um livro, mas definitivamente não achava que viria a conhecer tão visceral e poética obra literária.

O romance do gaúcho Luiz Sérgio Metz pertence àquela categoria de obras que extrapolam a palavra escrita, simplesmente porque encerram mais coisas do que a palavra escrita pode conter em si. Ao final da leitura, você sente uma ponta de culpa ao buscar recolocar Assim na terra no universo da palavra escrita – como numa resenha dessa mesma obra, por exemplo –, pois isso parece reduzir seu potencial enquanto reflexão de raízes ontológicas profundas.

No intuito de pôr os leitores incautos a par de algo que se assemelhe minimamente a uma sinopse ou síntese da trama, ei-la: Assim na terra narra a viagem empreendida por um protagonista não nomeado, em parte sozinho e em parte acompanhado de Gomercindo, um velho gaúcho de envergadura épica, rumo ao Sul. A jornada, feita majoritariamente a cavalo, leva o protagonista por diversos lugares simbólicos e emblemáticos do universo rio-grandense, como os pampas, as coxilhas, as frias madrugadas, as cidadezinhas à beira do caminho das tropas, as estâncias, as histórias de beira de fogueira embebidas no gosto amargo do chimarrão e assim por diante.

Nesse sentido, o livro não parece ser mais do que uma trama linear, cuja inspiração regionalista tantas grandes obras da literatura nacional cultivaram. O que faz com que Assim na terra não possa ser reduzida a essa categorização é a forma como Metz resolveu narrar e retratar o Sul. Há mais na viagem do que paisagem, há uma busca latente embalando cada passo e cada trote, como exprime o tom da seguinte passagem:

 

“Estou numa viagem. Estou seguindo. Toque dos pés na terra vermelha, letras no caminho, então. Quando parti, faz algum tempo, comecei a anotar em noites que formavam tríades, ver o que lembrava sob necessidade, conduzindo-me no escuro do sul encravado nos contrafortes, no fundo dos valos, que depois abandonaria.” (p. 27)

 

Há algo mais do que flâneur aqui – embora eu ache que o próprio flâneur é uma busca disfarçada –, existe uma empresa, um empreendimento que visa destilar significado da miríade de pequenezas que formam aquele universo rio-grandense palmilhado pelo narrador-protagonista. É possível notar esse esforço no trecho seguinte:

 

“Apontamentos que me ajudavam a encontrar um sentido menos instantâneo que os de até então. Uma luz escurecida ainda me habitava e, se persistisse, me cegaria, mas falaria por mim, se alimentada pelo meu apontamento, se desse a ele meu passado, se isso de simples fosse possível: apagamento.” (p. 28)

 

O protagonista tem muito em comum com Luiz Sérgio Metz, já que ele também empreendeu uma jornada de seiscentos quilômetros no lombo de um cavalo, acompanhado pelos companheiros Pedro Luiz Osório e Tau Golin. Essa foi, de certa forma, uma preparação para o aguçado olhar que o autor voltou à sua terra. Metz estudou jornalismo, letras e filosofia, de modo que teve uma formação humana bastante interessante e ampla, ainda mais considerando o tempo e o lugar onde viveu – numa região de intenso intercâmbio cultural como é o Rio Grande do Sul próximo às áreas fronteiriças, num momento de efervescência e de grandes promessas como fora o contexto de reabertura democrática e de ascensão dos movimentos populares.

Metz, aliás, militou pelo PT e participou da seção de cultura do governo municipal do partido em Santo Ângelo, cidade onde nasceu. Uma das tônicas de discussão acadêmica nas proximidades de Santa Maria, cidade de grande presença universitária que ele conhecia muito bem, se dava em torno do lugar e do papel que o Rio Grande do Sul ocupava e desempenhava no contexto sul-americano e latino-americano mais amplo, com especial ênfase para os países próximos, como Argentina e Uruguai. Metz participou, inclusive, do grupo de música nativista Tambo do Bando, cujas letras procuravam dar dimensão a esse sentimento e visão acerca do Rio Grande do Sul e da cultura regional.

Diante dessas informações acerca do autor de Assim na terra, a obra se redimensiona por estar alimentada por tais vivências, afinal, a conexão visceral de Metz com a linguagem e com o modo de vida do qual ele partilhou não é fortuita. O romance em questão está profundamente entrelaçado a tudo o que constituía as visões políticas, filosóficas, sentimentais e morais de Metz, alçando a obra a um universo simbólico de ressonâncias tanto estéticas quanto ontológicas, históricas e sociais. Por isso é que me referi ao fato de Assim na terra extrapolar a palavra escrita.

A narrativa de Metz é uma poesia disfarçada de prosa. É uma prosa poética repleta de contornos sinestésicos, que buscam explorar as palavras fônica e semanticamente. O livro todo está repleto de palavras que costuram sua força estética com seus caracteres líricos e simbólicos, criando um texto cujas significações não se limitam à superfície da narrativa.

É como se Metz partilhasse de alguns pressupostos da “prosa espontânea” de Kerouac, mas, não satisfeito com a imediaticidade da narração e da descrição, se pusesse a trabalhar cada mísero detalhe que compõe a escritura da obra, polindo-os com esmero do poeta – não à toa, portanto, as numerosas referências a Goethe, Mallarmé, Baudelaire e Eliot. Assim na terra é um livro que parece querer ser grifado a todo o momento. Mesmo quando ele mergulha nas especificidades descritivas do lugar, trazendo uma torrente de elementos que compõem o cenário, ele consegue sair delas com mais do que um simples arrolamento, como no seguinte trecho, no qual o protagonista encontra-se numa casa abandonada:

 

“Dei numa peça e dessa para outra e para um corredor e desse para uma ausência de sentido. Logo me recuperei, tinha cacos de espelho nos cabelos. Fui de gatinhas para diante, no sentido contrário da quebração, mas mais andava e mais encontrava o gineceu da implosão, pois rente a mim desciam platibandas, guarda-ventos, caibros, escadas, giraus, barrotes, vigas, treliças, mata-juntas, oratórios, ferros, tesouras de madeira pesada. Pelancas de morada, ossamenta de lar, rugas no escombro.” (p. 54)

 

À certa altura da trama, o protagonista chega ao Pensário, um galpão construído especialmente para o exercício e a arte de refletir. É um dos momentos solenes do livro, na qual Metz deixa-se levar por pensamentos e divagações, procurando ir além do imediatamente visto e experimentado. Se trata de algo mais do que uma orgia abstratificada, é um dos recursos dos quais Metz se valeu para ir além do regionalismo, uma vez que essa era uma das preocupações que compunha a pauta de discussões nas quais ele tomou parte. Assim na terra não se furta ao retrato de vários emblemas rio-grandeses, mas, ao mesmo tempo, não busca restringir-se em sua especificidade: é um livro que trata de temas típicos do regionalismo sem, no entanto, ser tipicamente regionalista.

Isso encontra-se expresso tanto na maneira como os elementos regionalistas são retratados – como fazendo parte de um universo bem mais amplo, que extrapola o micro-cosmos regional –, quanto também na forma como os usos da narrativa se dão – a prosa de Metz é intrincada, elaborada, dada a divagações e experimentações. A própria jornada é, nesse sentido, simbólica, pois os dois personagens principais rumam ao Sul, embrenhando-se em outras veredas ao longo desse trajeto. O Sul não deixa de ser o Sul, mas passa a existir num universo mais amplo, que ao invés de limitá-lo, realça sua singularidade.

Como já deve ter ficado bastante claro nesse ponto, minhas expectativas com relação ao romance de Metz realmente não estavam à altura de tudo o que o livro foi capaz de trazer em seu seio. Feliz descoberta, pois; a qual espero que enseje muitas outras.