A competição oficial Première Brasil do 15° Festival do Rio, nesse tumultuado anno domini de 2013, tem oferecido um desafio extra aos jornalistas, críticos e cinéfilos que a acompanham de perto: cobri-la é consequentemente também cobrir a nova onda de manifestações que tem tomado a cidade, liderada pela classe de professores da rede pública1, com novas vergonhosas cenas de abuso e força-bruta policial. Assim, os filmes da competição, que tradicionalmente têm sessões de gala no Cinema Odeon, estão sendo transferidos para outras salas da cidade. Localizado na Cinelândia, próximo da Câmara do Rio, o cinema está no olho do furacão.

Em nota divulgada no site oficial os organizadores afirmam que o “Festival do Rio mantém seu compromisso assumido com a população do Rio de Janeiro e com a cultura da cidade”, justificam a escolha do Odeon pela sua tradição e asseguram que a programação não será comprometida.

O episódio expõe que quando se fala em novos tempos para o Cinema, não está referindo-se apenas a novas tecnologias, formas de captação e distribuição, mas também a consciência que os autores devem desenvolver em tempos conturbados, de crise do capitalismo, revoluções culturais, turbulências econômicas, políticas e manifestações.

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Protestos em frente à sessão de gala do filme ‘Amazônia’, de Thierry Ragobert, que abriu o Festival 2013

Mas agora vamos falar de Cinema, pois é isso que aqui nos interessa!

O Festival deste ano tem reforçado, dia após dia, seu pendor pelos documentários. São excelentes obras, muitas vezes seguido por debates interessantes com os diretores, como os da mostra Cinema e Direitos Humanos, apoiada pela Anistia Internacional. Um exemplo é o interessantíssimo Uma Família Gay (2013, de Maximiliano Pelosi, mostra Mundo Gay), que comoveu a plateia trazendo o tema dos direitos dos casais homossexuais, sobretudo os de adoção e união estável. Ao meu lado na sessão havia um casal homossexual de septuagenários, no momento em que os créditos subiram, o que estava mais próximo a mim exclamou: Belíssimo! – seguindo-se a luz acendendo que revelou as lágrimas em seu rosto. Eu me comovo com o Cinema que consegue comover.

Ainda nos documentários, vi Cidade de Deus – 10 anos depois2 (2013, de Cavi Borges e Luciano Vidigal, Première Brasil), que localiza os atores do premiado filme de Fernando Meirelles; antes, porém, vi o simples e hilário Até o Céu São Mais ou Menos 15 Minutos (2013, de Camila Battistetti, Première Brasil Curtas), que tem mais cara de vídeo do YouTube do que de filme, mas encantou a plateia com as três crianças choronas.

Minha overdose de docs completou-se com Christoph Schlingensief e a Vila Ópera de Burkina Faso (2012, de Sibylle Dahrendorf, Itinerários Únicos), sobre o dramaturgo com câncer que quis levar ópera à savana africana, mas morreu antes da conclusão do projeto; Eu Sou Divine (2013, de Jeffrey Schwarz, Mundo Gay), sobre a musa do diretor John Waters em filmes como Pink Flamingos (1972); e Boteco (2012, de Ivan Dias), sobre os tradicionais botecos cariocas que são “casas portuguesas, com certeza!” – documentário cujo problema central é passar duas horas mostrando comidas suculentas e, com isso, deixando a plateia morrendo de fome.

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Harris Glenn Milstead (1945-1988), a Divine do diretor John Waters ganha biografia abrangente na mostra Mundo Gay

Agora vamos para as ficções, porque nem só de documentários vive um cinéfilo:

Essa foi a semana de exibições lotadas de Blue Jasmine (2013, de Woody Allen, Panorama do Cinema Mundial). Woody Allen é pop, Woody Allen é hype e os comentários têm sido muito positivos. A mim restou a insatisfação de não ter conseguido ingressos a tempo – e a esperança da estreia no circuito comercial.

Também já está nas salas o novo de Affonso Cuarón, Gravidade (2013, Panorama do Cinema Mundial), com Sandra Bullock e George Clooney que, honestamente, me faz sentir um cheirinho de bomba. Prefiro esperar, sem nenhuma pressa, a estreia comercial. Moebius (2013), do prestigiado-pelos-cults Kim Ki-duk, e Fading Gigolo (2013, trailer abaixo), dirigido pelo ator John Torturo e estrelado pelo diretor Woody Allen, também têm recebido elogios; ambos na mostra Panorama do Cinema Mundial, trazem seus diretores ao Rio para a apropriada divulgação.

Por fim, o mais importante: a mais nova obra prima do Cinema nacional, com o ator, como já falei aqui, que melhor tem escolhido seus papéis e que há pelo menos quatro anos têm sido protagonista do melhores filmes nacionais do ano, Irandhir Santos. Tatuagem (2013, de Hilton Lacerda, Première Brasil Longas) é tão plural, tão vibrante, tão honesto e corajoso que merece um artigo só dele aqui no Posfácio (compromisso para os próximos dias). Hoje só digo a todos que estão no Festival: assistam e morram de orgulho do Cinema brasileiro!

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Hilton Lacerda, colaborador de Claudio Assis (Febre do Rato, 2012), traz o dilacerante ‘Tatuagem’

Melhor filme visto (entre segunda, 30, e quinta, 03): Tatuagem, obra prima de coragem e qualidade, enredo redondo, ousado, atuações impecáveis e um punhado de novos atores que merecem acompanhamento mais detido.

Outros destaques: destaque negativo para os técnicos do Estação Rio que avisaram apenas no momento da compra de ingressos que o filme A Gatinha Esquisita (2013, de Marc Rothemund, Foco Alemanha) seria exibido em alemão, sem legendas – give me a break, would you?

Outro destaque vai para o excelente ator Mads Mikkelsen que tem deixado sem fôlego os que assistem Michael Kohlhaas (2013, de Arnaud des Pallières, Panorama do Cinema Mundial), mais uma vez provando que além de ser muito bonito, é um dos mais talentosos atores da atualidade.

Apenas para terminar de onde começamos, nos protestos, é digno de nota que no dia 02, quarta-feira, ocorreu o evento Conversas na Escadaria da Câmara do Rio de Janeiro, onde os diretores do documentários 99% – O Filme Colaborativo do Occupy Wall Street (2012, de Audrey Ewell, Aaron Aites, Lucian Read e Nina Krstic) conversaram com os manifestantes. Uma troca interessante que pode ser considerada um evento off-Festival.

http://www.youtube.com/watch?v=cqGDBnYU6rA

  1. Imagem em destaque via portal Uol
  2. Esse filme foi feito com o esforço guerrilheiro de pequenos grupos de Cinema da cidade do Rio, entre eles o Cinema Nosso, espaço na Lapa oriundo do grupo de profissionais de Cidade de Deus, onde, ano passado, pude fazer algumas aulas de roteirização. Por isso, dedico essa postagem a eles e ao empenho de seus profissionais em fazer Cinema no Brasil.