por Humberto Schubert Coelho

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Quanto às obras, podemos entender Lovecraft como um autor de fases. A primeira delas é fortemente dependente de Poe e engloba temas de suspense (levemente) sobrenatural, e que podemos classificar como contos de terror não-cutulhóide e não-onírico. A esta fase pertencem clássicos como The Tomb e The Picture in the House, estórias não muito envolventes como Haunted, e já algumas obras inesquecíveis como The Statement of Randolph Carter, que aos poucos conquista o leitor para o clima específico do terror lovecraftiano, ou The Nameless City, que foi tão explicitamente copiado por Robert Howard em alguns dos contos mais conhecidos de Conan que os fãs reconhecem unanimemente o mesmo cenário compartilhado por distintos personagens. Em não poucas ocasiões após esta primeira fase Lovecraft se refere à era Hiboriana como o passado real e esquecido que originou suas cidades recém-descobertas sob as areias do deserto árabe nos anos 1920.

Logo a seguir entramos na fase plenamente cutulhóide, termo estabelecido por consenso em referência ao clássico The Call of Cthulhu, posteriormente popularizado em jogos de tabuleiro e de interpretação de personagens.

Apesar da fama de Cthulhu, muito devida à sua aparência arquetipicamente demoníaca, as estórias de Lovecraft nem de longe giram em torno desta entidade. Aliás, não giram em torno de entidade alguma do panteão de horrores cósmicos e ancestrais, senão tentam exatamente mostrar que não há algo como uma “hierarquia dos monstros”, ainda que alguns possam definitivamente ser apontados como (ainda) mais antigos e poderosos.

Nyarlathotep, ainda com muitas influências de estilo alheios, é provavelmente o ponto de equilíbrio que separa as fases amadora e madura da escrita de Lovecraft, apresentando de forma exageradamente vaga e dramática este “horror rastejante que espreita nas sombras”. A terminação egípcia do nome revela sua presença desde os primórdios da civilização humana, quando as forças cósmicas eram inclusive mais bem conhecidas.

O mestre das máscaras e das intrigas, que viria a povoar diversos outros textos, é desde aqui apresentado como uma inteligência sobre-humana e sutilíssima que pacientemente manipula toda a humanidade a partir de seu palácio no mundo dos sonhos – se você conhece alguém que repentinamente ensandeceu ou sofreu modificações inexplicáveis, passando a se considerar um iluminado e nutrindo desejos megalomaníacos, provavelmente esbarrou com uma vítima inconsciente de Nyarlathotep.

The Other Gods é um marco que atesta não só a originalidade particular de Lovecraft como começa a conectar os contos antigos em um cenário. Daqui pra frente quase tudo estará associado a um contexto mais coerente com personagens e locais reconhecíveis. Isso é importante porque uma parte significativa dos fãs de Lovecraft considera a cidade fictícia de Arkham e sua Miskatonic University os elementos mais interessantes de sua literatura. De fato, basta lembrar que o Asilo Arkham de Batman foi inspirado nesta cidade para ter uma boa ideia do ambiente.

A região que inclui Providence (cidade real em que Lovecraft viveu parte de sua infância) e gravita sob a influência de Boston é um dos poucos lugares nas Américas em que é perfeitamente plausível encontrar mansões de trezentos ou quatrocentos anos de idade (naturalmente próprias para assombrações e outros terrores), universidades respeitáveis nos anos 1910 e 1920, herdeiros de respeitáveis fortunas dispondo de tempo livre para uma excursão a cavernas misteriosas na Austrália e, ao mesmo tempo, um estilo de vida pacato e roceiro o bastante para que os mistérios continuassem desconhecidos do resto do mundo e Lovecraft pudesse exercitar suas adoradas imitações do dialeto ianque arcaico. Sinceramente, alguns monólogos neste dialeto são bastante desestimulantes.

É também só a partir de The Other Gods que o mundo onírico começa a se mesclar explicitamente aos temas cutulhóides, de modo que sem este conto é um pouco difícil acompanhar o que vem depois. A obra completa é bastante contínua e hostil ao leitor que deseje uma incursão rápida e isolada em um ou dois textos, o que tende a afastar os aventureiros e cativar os adeptos fiéis do estilo.

The Mountains of Madness, que chegou a virar um péssimo filme há não sei quantas décadas, é talvez o trabalho mais famoso do gênero Cthulhu. O texto é denso, frequentemente entediante, truncado e cheio de referências incompreensíveis que nos fazem desejar uma leitura mais leve e clara, como o Mysterium Magnum, o Apocalipse de João ou o I-Ching, e as recompensas estão quase todas na dependência de um bom conhecimento dos personagens e do cenário, o que exige a leitura de ao menos outros cinco ou seis textos deste período. Mas, ainda assim, é um texto que deve ser lido por quem está à procura de algumas noites de insônia acompanhada daquela sensação de “mas que diabos…”.

The Unnamable e The Descendant são contos que eu destacaria por marcarem uma evolução na qualidade da narrativa. Não que Lovecraft não escreva bem desde o início, mas até poucos anos antes ele não tinha a preocupação ou a capacidade de refinar o texto com virtuosismo e concatenar as ideias com aquela naturalidade e fluidez que facilitam a imersão do leitor e consequentemente agregam plausibilidade ao cenário e humanidade aos personagens.

O Mal lovecraftiano

The Call of Cthulhu, a obra mais famosa ao lado de The Mountains of Madness, apresenta-nos Cthulhu em toda a sua perfídia e grandeza, abundando também em referências a outras entidades do panteão horripilante e ajudando-nos a compreender o seu modus operandi, que se resume em um “chamado” psíquico através do qual o extraplanar tenta incutir-se nas mentes fracas a fim de levá-las a cumprir os pré-requisitos de sua própria invocação para o plano terreno.

Como as entidades cósmicas geralmente não são materiais, mas feitas de uma substância onírica mais real – a realidade primeira é o mundo dos sonhos, do qual o universo material é um símile simplificado – a existência mesmo que temporária no plano terreno nem sempre é desejável e/ou possível. Assim, os seres cuja natureza é quase exclusivamente psíquica só vêm ao mundo indiretamente, na forma de avatares ou possuindo os corpos de seres vivos, preferencialmente sensientes. Aqueles outros cuja natureza é semimaterial podem até ter uma forma visível no plano físico, ainda que nunca venham a ser efetivamente materiais – a metafísica é meio estranha, mas ao que me parece os corpos das entidades, quando existem, são “simbólicos” – e, neste caso, tendem a hibernar por longos períodos (milênios, milhões de anos…), por causa da dificuldade de se impregnarem das forças físicas necessárias à atuação neste mundo. A consequência desta dificuldade de acessar o plano físico é a necessidade quase absoluta de veículos físicos propícios e dispostos, isto é, acólitos, cultistas e outros tipos de ferramentas humanas.

As entidades contatam estas vítimas voluntárias por meio de sonhos divinatórios, pesadelos escravizantes, ou simplesmente sussurrando promessas para as quais as vítimas sejam particularmente suscetíveis.

Dificilmente o controle dos humanos se dá à revelia de sua vontade, o que não significa que seja difícil. Lovecraft não tinha muitas esperanças no gênero humano, de modo que a maioria de suas personagens está pronta a entregar o destino da Terra para os tentáculos de uma abominação gosmenta e rastejante em troca de sexo, dinheiro ou, quando muito, uma passagem só de ida para o mundo dos sonhos com alguns privilégios – a versão cutulhóide de um “terreninho no céu”.

Como na cosmovisão ética de místicos de várias procedências, o Mal lovecraftiano é primariamente sedutor e tentador, só raramente exerce uma opressão ostensiva contra a vontade de seus subordinados.

É evidente pelo que foi dito até aqui que uma das características principais do horror cósmico, a saber, o seu tom de mistério profundo, acaba entregando os pontos à necessidade que todo autor tem de expor mais detalhadamente o que lhe passa na alma. Seja porque o suspense eventualmente perde a graça e o autor se sente forçado a produzir uma passagem para outro tipo de fruição, seja porque os pesadelos de Lovecraft passaram aos poucos a um estado menos nebuloso em que os terrores, então, podiam ser discernidos, seus escritos finais abriam mão das hipérboles em função de descrições quase ausentes de dramaticidade. A apresentação detalhada do mundo dos sonhos e do panteão de entidades cósmicas que o habita, pronto a invadir a Terra ao menor sinal de um convite, retira parte do gosto de construirmos por nós mesmos aquelas figuras amorfas e inaceitáveis apontadas apenas com adjetivos metafóricos. Mas nem tudo é perda com esta inovação. Uma boa parte da angústia provocada (ou despertada) pelo horror cósmico consiste na roupagem filosófica do mito, de modo que a perda do suspense é imediatamente superada pela sensação de que ele era em certo sentido uma etapa introdutória, mero recurso pedagógico para preparar as mentes dos neófitos.

Não surpreende que o autor de um panteão de seres monstruosos e moralmente indiferentes à existência humana, capazes de influenciar as mentes das massas através da exploração e manipulação de suas paixões mais vis, um autor que afirmava ainda que este cenário, longe de ser produto da fantasia, era a realidade verdadeira intuída por faculdades psíquicas que nele e em outros poucos excediam as do homem comum, fosse simplesmente classificado por muitos como um satanista.

Tais acusações não chegavam a incomodar muito Lovecraft, uma vez que ele entendia ser o satanismo, a magia negra ou a bruxaria, intuições basicamente corretas e similares à sua de que algo “inteiramente outro” habita e espreita nas sombras da mente, no negrume constrangedor que separa as estrelas.

Em suma, a literatura de Lovecraft começa com a pergunta sobre o mistério do homem. Questão filosófica que envolve sua procedência e seu destino, o sentido da vida e a possibilidade de felicidade ou de realização. Para todas estas questões filosóficas ele oferece a mesma resposta, de acordo com a ciência e a cultura da época. O homem é um animal, saído não se sabe de que experimento maluco na natureza ou de forças alienígenas, cuja mente fraca e doente confunde o sono com a vigília, valorizando o torpor de olhos abertos em detrimento da lucidez dos sonhos. Este animálculo habitante de um mundo insignificante que orbita uma estrela periférica e se arrasta com dificuldade pela lama deste planetoide mal cogita das forças maiores que envelheceram com suas já mortas estrelas e desenvolveram mentes tão poderosas que lhes facultaram a vida exclusivamente no plano do espírito, no mundo dos sonhos, maior e mais real do que este pobre plano das limitações físicas. Deus está indubitavelmente morto, como proclamou o louco de Nietzsche, e o homem está entregue a forças nem boas nem sábias como diagnosticara Schopenhauer, mas – audácia delirante – isso tudo não o leva a entregar-se, a nutrir desejos suicidas, a entregar-se como o gado humano tão alegremente o faz ao império destas forças maiores. O escritor ousa adentrar este vasto mundo estranho, conhecer o desconhecido, revelá-lo publicamente sob o disfarce da ficção e propiciar a alguns outros poucos o sentimento arrojado da libertação da ilusão. Uma pena que esta libertação seja, ao final, indistinguível da loucura.

Sobre o colaborador: Apaixonado pela literatura moderna, com destaque para os clássicos que fundaram os vernáculos, os romances do século dezenove e a escrita introspectiva das autobiografias, sermões e tratados psicológicos e filosóficos de veia literária. Paralelamente, tem interesse em contos de fantasia, terror e ficção científica; preferencialmente quando os três gêneros estão reunidos. Procura escrever sobre as angústias humanas, mas sob uma perspectiva idealista acerca da humanidade.