Se você ouvir falar em “geração perdida”, provavelmente vai se lembrar, quase que de cara, dos escritores Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Mas é bastante provável que não se lembre – ou pelo menos não nesse contexto – do escritor austríaco Joseph Roth.

É fato que Gertrude Stein, a escritora que cunhou esse termo, conviveu com aqueles dois escritores, além de outros (Ford Madox Ford, Sinclair Lewis, James Joyce, Ezra Pound etc.), e que, baseada na textura espiritual desse convívio e das obras deles, julgou cabível a alcunha. Existe, portanto, uma conexão especial entre o adágio de Stein e os escritores supracitados. No entanto, considerando a textura espiritual e o “senso de perdição” da geração, talvez seja precisamente Joseph Roth aquele que mais intensamente a emblematize.

O escritor austríaco vivenciou esse estigma cotidianamente, sendo sua própria vida a trajetória errante de alguém que fora desterrado pela força das circunstâncias – em seu caso, pela desagregação do Império Austro-Húngaro no pós-Primeira Guerra Mundial –, e que se tornara, pela definição mais cabal da palavra, alguém perdido. A obra de Roth expressa muito bem esse zeitgeist, essa estrutura de sentimentos que tomou conta de boa parte da Europa no período do pós-guerra, sendo em grande por isso que o escritor desenvolveu tamanha sensibilidade: essa situação não era meramente um tema que ele buscava explorar, era sua existência, uma condição experimentada visceralmente como sua.

Situando o romance Hotel Savoy nessa conjuntura material e espiritual, e situando-o também no conjunto da obra de Joseph Roth, percebemos que a obra de 1924 não passou incólume aos solavancos da guerra e do espectro de transformações que pairava nos céus, e nas terras, da Europa. É nessa conjunção entre a história e a ficção que esta resenha buscará insistir.

A narração do romance é feita por Gabriel Dan, um soldado que voltava do front em busca de um mínimo de estabilidade para sua vida. É nesse momento que surge em seu caminho o Hotel Savoy, um lugar que parece de início ser um porto seguro no qual ele poderia ancorar temporariamente. As toalhas são limpas, os quartos bastante aconchegantes e a atmosfera toda do lugar bastante razoável.

O protagonista parara ali por estar o hotel na mesma cidade onde habita seu tio, Phöbus Böhlaug, um homem rico, mas sovina, ao qual Gabriel Dan pensa poder recorrer na sua jornada para o oeste europeu. As expectativas são, no entanto, frustradas, ao passo que a viagem deixa de ser uma possibilidade concreta e o Hotel Savoy passa a ser uma residência. É esse o ponto em que o velho prédio se torna realmente o cenário onde desfilarão os dramas do pós-guerra e os eventos que formam a trama de Hotel Savoy.

A partir daí Gabriel Dan passa a se relacionar com os outros hóspedes/residentes do Hotel Savoy e a se arvorar nesse ambiente. Ele conhece Stasia, a dançarina cujo relacionamento iminente com o protagonista se mostra ambíguo, quase etéreo, em sua possibilidade de arraigar-se. Ele conhece Hirsch Fisch, um estanho homem que sonha em acertar algum dia os números da loteria. Ele fica imaginando como é Kaleguropulos, o grego proprietário do hotel, uma figura misteriosa que nunca aparece em seu estabelecimento. Ou seja, Gabriel Dan passa a constituir um capítulo de sua vida nesse lugar, nessas circunstâncias e com esses sujeitos.

Ele busca empregos para juntar o dinheiro que precisa para seguir em frente, e nessas andanças vai se deparando com diversos personagens que sintetizam sentimentos e situações daquela realidade. Ele se depara com os fugitivos russos – sempre cinzentos e macambúzios como em Nada de novo no front –, com farrapos humanos tentando encontrar meios de sobreviver, com as cortesãs da senhora Jetti Kupfer, com o magnetizador Xaver Zlotogor e com o mórbido espetáculo da marcha dos regressados – aqueles que voltavam do front ou que fugiam dos últimos espasmos da guerra:

“O pó dos anos perdidos a caminhar cobre suas botas, seus rostos. Suas roupas estão esfarrapadas, suas bengalas são rudes e gastas. Chegam sempre pelo mesmo caminho e não viajam de trem, mas caminham. Devem ter caminhado por anos até chegar aqui. Sabem dos países estrangeiros, da vida forasteira, e, como eu, percorreram muitas vidas. São errantes.” (p. 106)

Os breves lapsos nos quais o peso do mundo não recai sobre os ombros e a face de Gabriel Dan é quando ele dedica-se à fanfarronice e à boêmia, especialmente quando encontra-se com Zwonimir, fortuitamente, numa estação de trem, à procura de trabalho. O espírito e os modos folgazões do revolucionário croata, ex-companheiro de guerra de Dan, fazem com que o protagonista esqueça por alguns momentos a pesarosa situação em que se encontra. O componente filosófico do estilo de vida bon vivant de Roth está aí novamente representado.

Todo o Hotel Savoy e os demais habitantes das proximidades esperam com ansiedade a vinda do Sr. Bloomfield, um investidor americano que faz as vezes de tábua de salvação para eles. O clima de expectativa preenche as conversas e as esperanças de toda a gente, impedindo-os de cair no tão próximo abismo da depressão.

Do momento da chegada de Gabriel Dan até esse ponto do livro, quando o protagonista já está bem estabelecido, às vésperas da vinda de Bloomfield, o Hotel Savoy já se transfigurou. Ele deixou de ser aquele prédio asseado para se tornar um lugar decadente em que os andares, antes de divisões espaciais, encerram uma hierarquização social entre os decadentes que os habitam. Cada quarto guarda uma pequena história, e cada quarto revela uma faceta da decadência.

A derrocada de Hirsch Fisch, os lampejos de estabilidade dos andares burgueses, as incertezas de Dan, os dilemas de Stasia – Joseph Roth fez com que todos os quartos e andares do Hotel Savoy revelassem aspectos da situação europeia do pós-guerra. O hotel é um microcosmo que serve de metáfora da Europa, uma versão miniaturizada e de contornos espirituais da Europa naquela conjuntura histórica.

Joseph Roth foi perspicaz em perceber as diversas dimensões da tragédia da guerra e do drama do mundo que sobrou depois dela. Esse mundo se manifesta e se encarna na tragédia individual de cada personagem, enquanto eles dividem a condição de regressados, de permanentes errantes. Praticamente nada do que Dan faz ou tenta levar a cabo como projeto ou aspiração tem solidez, tudo escorre por entre seus dedos numa torrente de incertezas: seus trabalhos são temporários, seu relacionamento é ambíguo, sua permanência é incerta, sua partida é sempre em breve. O próprio fato de o hotel, uma morada provisória, se tornar uma habitação perene é prenhe de ressonâncias históricas e filosóficas.

Com uma maestria narrativa invejável e usando dos artifícios e recursos literários com inventividade, Joseph Roth constrói um retrato do mundo pós-guerra, não somente o mundo material, mas o mundo humano, com suas esperanças, frustrações, aspirações e sentimentos. Se os pontos de intersecção entre um e outro, a nota mestra, são a decadência e a incerteza, isso certamente nos diz muito sobre aquela realidade, e quem sabe ainda mais sobre a assim chamada natureza humana.