Em uma Mostra marcada por filmes lentos, silenciosos e cujos temas giravam em torno de luto, crise e decomposição, parecia improvável que O Foguete se tornasse um dos destaques, mas o longa do australiano Kim Mordaunt foi daqueles que chegam silenciosamente e angariam bons comentários até que, no final do festival, suas sessões se esgotam em minutos.

É verdade que o filme não veio sem credenciais: no festival de Berlim ele conquistou o Prêmio da Anistia Internacional, Melhor Filme de Estreia e o Urso de Cristal. O Foguete foi também o grande vencedor do festival de Tribeca desse ano. Ainda assim, sua chegada em São Paulo foi discreta e as sessões acompanhadas por um diretor verdadeira grato e surpreso com a boa recepção da plateia.

Em 2007, Kim Mordaunt fez um documentário sobre a comunidade laosiana da Austrália. O Laos é um pequeno país entre o Vietnã e a Tailândia que, por conta da Guerra do Vietnã e de sua própria guerra civil, sustenta o título de lugar mais bombardeado da Terra. Ainda hoje, granadas e minas terrestres podem ser encontradas pelos campos e qualquer coisa que toque nesse assunto é vista com extrema desconfiança pelo governo do país (o Laos é, segundo minha rápida pesquisa, uma “república socialista unipartidária”) a ponto de cenas do filme envolvendo explosivos terem que ser feitas do outro lado da fronteira, na consideravelmente mais liberal Tailândia. Ao entrar em contato com os refugiados na Austrália, Mordaunt desenvolveu uma relação estreita com a comunidade e decidiu anteder aos pedidos de produzir um filme filmado no Laos, falado na língua local e com atores nativos.

O Foguete conta a história de Ahlo, um garotinho nascido em uma tribo que possui a crença de que em cada par de gêmeos um é abençoado, mas o outro carrega uma maldição e, por ser impossível saber qual é qual, ambos devem ser eliminados, seu irmão morreu no nascimento, mas Ahlo carrega a fama de criança amaldiçoada consigo.

Quando a construção de uma hidrelétrica força sua família a se mudar para um campo de refugiados, Ahlo encontra Kia e seu Tio Roxo, um par de deslocados, párias como ele. Porém Roxo é mais do que um excêntrico, ele é um poço de demônios e lembranças da guerra afogadas em whisky, um amaldiçoado que decide tomar Ahlo sob sua asa. Depois de um acidente que os torna indesejáveis no campo, Ahlo, sua família e os dois agregados seguirão para o festival de foguetes da região onde o garoto tentará provar que não é amaldiçoado.

Talvez uma das coisas mais difíceis do cinema seja usar os clichês para o bem. Clichês tornam-se clichês por um motivo simples: eles funcionam. Funcionam tanto que foram usados a exaustão e tornaram-se uma saída preguiçosa, ainda assim, há uma certa mágica em um filme que obedece às expectativas. Mordaunt oferece essa mágica, mas mais do que isso, ele convence seu público a colaborar com o truque.

Sua história é inverossímil e ele sabe disso, o diretor sabe que está torcendo a realidade para dar a seus personagens um final feliz, no entanto, ele o faz sem desrespeitar a inteligência do espectador e com personagens tão adoráveis que apenas um ser sem coração teria coragem de esperar que esse filme acontecesse de outro jeito. No debate após a sessão ele disse que a procura pelos atores mirins foi exaustiva, a ponto de Ahlo ser interpretado por um ex menino de rua. Exaustiva, mas necessária, a escolha das crianças sustenta o filme: elas não são apenas bonitinhas, são expressivas, vivazes e capazes de transmitir uma dor e sofrimento que parecem impossíveis (e injustos) em seres tão pequenos.

Em oposição aos jovens protagonistas está Roxo e a história que Mordaunt insinua, mas não conta. O personagem permanece de lado, como a consciência do diretor e do público, nos lembrando do destino real daquela gente, de como a vida realmente funciona. Mas a vida é vida e cinema é cinema e às vezes é possível fazer uma concessão à fantasia. O Foguete não esquece que está fazendo uma concessão, que está brincando de faz de conta em um país devastado, mas é de um otimismo tão contagiante e tem sua narrativa tão bem amarrada e equilibrada que convence e funciona impressionantemente bem. É um filme otimista, cativante, engraçado e triste. Agridoce talvez seja a palavra certa. É sem dúvidas um dos destaques da Mostra, nem que seja só por provar que é possível fazer bom cinema com a felicidade.